Uirá Machado / Folha de S. Paulo
Clara Mattei afirma que políticas de redução do Estado são espinha dorsal das economias modernas contra trabalhadores
SÃO PAULO - Celebrado por
figurões como Thomas Piketty e Martin Wolf, o livro "A Ordem do
Capital" propõe uma nova maneira de enxergar as políticas de
austeridade adotadas por diferentes países.
Não como uma
exceção impopular e dolorosa usada só para reduzir o déficit
orçamentário em momentos de maior desequilíbrio nas contas públicas, mas como
"o sustentáculo do capitalismo moderno", segundo a italiana Clara
Mattei.
No livro, a pesquisadora volta à década de
1920 para mostrar como a austeridade surgiu depois da Primeira
Guerra Mundial em países como Inglaterra e Itália, quando
trabalhadores organizados cobravam mais direitos sociais.
Para Mattei, a austeridade foi naquela época
—e continua sendo hoje— "uma reação antidemocrática às ameaças de mudança
social vindas de baixo para cima". Daí o subtítulo da obra: "Como
economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo".
Em entrevista à Folha, ela diz que "as decisões econômicas são em grande parte decisões políticas", mas que o "capitalismo é incompatível com a democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas".
Em seu livro, a sra. afirma que os programas de austeridade devem ser vistos não como exceção, mas como o sustentáculo do capitalismo moderno. Qual o ganho analítico dessa perspectiva?
Minha definição tem a vantagem de ser uma definição política, na qual fica
claro quem ganha e quem perde com as políticas de austeridade. Essa definição
tenta ir além da ideia de que a austeridade seja apenas a redução do tamanho do
Estado.
Falar em
"menos Estado" é uma maneira muito ideológica de
entender a história do capitalismo e nossa situação econômica atual. O ponto
não é ver se o Estado gasta menos, mas onde o Estado gasta. Porque austeridade
não significa menos Estado, mas Estado gastando a favor das elites em
detrimento da maioria da população.
A trindade de políticas de austeridade
—fiscal, monetária e industrial— tem o objetivo de enfraquecer os sindicatos e
manter os trabalhadores sob controle. E isso enquanto o Estado gasta muito
dinheiro no complexo industrial militar, por exemplo, ou subsidiando
e desonerando investimentos privados em energia verde, ou resgatando
bancos.
Sua pesquisa volta aos anos 1920 para detectar as origens da austeridade na Inglaterra e na Itália. O que explica o surgimento desse receituário?
A austeridade não é um produto da exceção do sistema neoliberal. O que tento
mostrar é como, na verdade, a austeridade é funcional e estrutural para o
capitalismo. Ela é particularmente útil quando as pessoas querem um sistema
econômico alternativo, querem mais direitos sociais. Aí a austeridade é muito
importante para a elite, a fim de preservar o status quo.
Após a Primeira Guerra Mundial [1914-1918],
isso ficou muito claro, porque foi um momento em que, no coração do
capitalismo, os cidadãos estavam exigindo sociedades pós-capitalistas, rompendo
com as relações salariais, rompendo com a propriedade privada dos meios de
produção em favor da democracia econômica. Ou seja, as pessoas queriam a
participação dos trabalhadores no processo de produção e distribuição. Foi aí
que a austeridade nasceu.
O subtítulo do livro faz uma ligação forte entre austeridade e fascismo, mas a Inglaterra não teve um governo fascista. É possível generalizar a conexão?
A questão é mostrar que Mussolini se
tornou tão poderoso porque ele era muito bom em implementar a
austeridade, exatamente as mesmas políticas que os liberais na Itália, nos
Estados Unidos e no Reino Unido estavam patrocinando.
A capacidade de subjugar os trabalhadores, de
fazê-los aceitar salários mais baixos e parar com as greves; a capacidade de
privatizar, de cortar gastos sociais e revalorizar a lira: tudo isso fez de
Mussolini quem ele se tornou, um ditador fascista que permaneceu no governo por
mais de 20 anos.
O capitalismo é bastante incompatível com a
democracia no sentido de participação das pessoas nas decisões econômicas e na
distribuição de recursos.
Claro que o capitalismo é compatível com a
democracia eleitoral, mas isso é superficial. No capitalismo contemporâneo,
você pode se tornar fascista para apoiar as prioridades da economia. Foi o que
aconteceu na Itália sob Mussolini, no Chile sob Pinochet e é o que está
acontecendo agora na
Argentina com Milei.
Em outros países não é tão diferente, se você
olhar para a necessidade de proteger as decisões econômicas da interferência
das pessoas. E isso é feito com a independência
do Banco Central, com a ideia de colocar orçamentos equilibrados na
Constituição, com mecanismos técnicos que têm o mesmo efeito de desdemocratizar
a economia.
Há uma tensão entre capitalismo e democracia.
Os governos fascistas, obviamente, são antidemocráticos. Mas o que é
generalizável é que as supostas democracias liberais também têm tendências
antidemocráticas que se associam muito mais ao fascismo do que se costumava
pensar.
Que lições podem ser tiradas em relação à extrema direita hoje?
Os governos de extrema direita são muito bons em implementar a austeridade e,
por esse motivo, ganham a confiança do mercado e são vistos com bons olhos
pelos tecnocratas internacionalmente.
Mas o contexto agora é muito diferente.
Quando Mussolini chegou ao poder, ele estava lá explicitamente para esmagar
quem estava se mobilizando. Hoje, as pessoas votam em governos de extrema
direita porque foram desempoderadas por um século de políticas de austeridade.
O sucesso da austeridade está em nos
individualizar, nos tornar muito precários, nos tornar muito inseguros, para
que não sintamos que estamos unidos como trabalhadores. A razão pela qual esses
governos de extrema direita chegam ao poder é porque, em última instância,
representam a expressão da insatisfação com o atual sistema econômico, que as
pessoas entendem como um sistema a favor dos ricos e poderosos.
O problema é que as pessoas votam na direita,
mas a direita é melhor em implementar a austeridade.
No Brasil, políticas de austeridade não são exclusivas de governos de direita. Por que isso acontece?
Essa é outra lição muito importante que podemos tirar do estudo histórico:
infelizmente, a austeridade
atravessa as linhas partidárias. É a expressão do falso pluralismo
na economia que nossas democracias eleitorais apresentam. Elas nos dão a
impressão de que, se votarmos em Lula em vez de Bolsonaro, teremos uma completa
mudança nas políticas econômicas, mas é mais
complicado do que isso.
Sob o capitalismo, a prioridade de qualquer
governo, de direita ou de esquerda, é garantir os fundamentos para a acumulação
de capital, o que significa não perturbar os investidores privados.
Então não podemos pensar que votamos uma vez
a cada quatro anos e nosso trabalho está feito, porque existem pressões muito
fortes vindas do mercado. Se o povo brasileiro, como qualquer outro povo,
quiser uma mudança social séria, precisa lutar por isso.
Se você olhar historicamente, perceberá que
há muito mais potencial para sistemas econômicos alternativos do que estamos
acostumados a pensar, porque o objetivo principal dos economistas no poder é
nos dizer que não há alternativa possível.
As alternativas existem, mas, para obtê-las,
não basta eleger alguém que diga que fará algo diferente. Precisamos de uma
participação maior do povo na economia.
Mas como escapar da lógica que comanda a economia em escala global hoje em dia?
A mensagem principal que emerge do livro é que as decisões econômicas são em
grande parte decisões políticas, no sentido de que não há nada que seja uma
necessidade técnica. São decisões políticas que acontecem dentro de um sistema
que funciona sob pressões específicas.
Você pode ir contra essas pressões, mas terá
de arcar com as consequências. Essa mudança não acontecerá suavemente. Se você
quiser realmente subverter o Estado capitalista de dentro, você precisa
entender que não vai ser fácil.
*Clara E. Mattei, 35. Formada em filosofia, mestre na mesma disciplina e doutora em economia, é
professora associada do Departamento de Economia da New School for Social
Research (Nova York)
A Ordem do Capital - Como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo
Preço R$ 97 (488 págs.)
Autoria Clara E. Mattei
Editora Boitempo
Tradução Heci Regina Candiani
Muito bom! Democracias eleitorais, democracias econômicas, democracias liberais ou não... Parece que a autora também não acredita no "significado absoluto e universal do termo democracia" e considera que tal termo pode ou deve ser relativizado.
ResponderExcluir■■■Decisões econômicas tomadas por políticos qualificados são as decisões que a ciência econômica, com o uso de ferramentas das suas várias escolas, recomenda para serem aplicadas a cada caso, dependendo da necessidade ditada pela carência e o problema estrutural a ser resolvido.
ResponderExcluir■■Economia é uma ciência da carência, e não da abundância. É por isso que nunca pode haver "gastança" (alocação irresponsável de gastos) decidida pela "política politicalha".
■Em países com políticas econômicas saudáveis ocorrem situações eventuais de emergência que demandam arbitramento político, mas se a realidade de um país é de emergência generalizada e permanente alguma coisa de muito errada a política está fazendo com sua economia.
■■■Usar a economia para fazer "política" é coisa de oportunista, irresponsável, fisiológico, corrupto, carreirista... Haja adjetivos para qualificar essa corja.
■Um entendimento que desvia para a politização ou imediatismo da economia sem que tenha necessariamente a motivação maléfica dos políticos politiqueiros como Lula, Bolsonaro, Arthur Lira, etc é a merda do ideologismo, mas nesses casos de ideologismo, quando não forem impostura, significarão apenas auto-engano, como o desastre que Lujz Gonzaga Belluzzo inspirou no Brasil a partir de 2007 e resultou na MAIOR recessão já datada pelo CODACE em nossa história econômica.