sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Flávia Oliveira - Somos o mundo

O Globo

A mobilização da sociedade faz soar o alerta entre autoridades

Faz quase 40 anos, uma ação entre artistas mudou a forma de celebridades e sociedade civil se relacionarem com agendas humanitárias urgentes. A ficha caiu — expressão que também fazia sentido há quatro décadas, com os orelhões da pré-história da telefonia — diante do documentário “A noite que mudou o pop” (Netflix, 2024), que trata da articulação altruísta, logística e técnica que resultou na gravação do megassucesso “We are the world” (Nós somos o mundo, em tradução livre). Lembrar-se dessa época denuncia a idade, mas é para isso que serve a maturidade. Para os jovens de hoje, não é fácil dimensionar o que foi a reunião dos mais estourados artistas da música dos Estados Unidos para, numa noite, registrar a canção que rendeu, de imediato, mais de US$ 50 milhões para ações de enfrentamento à fome na África.

A iniciativa, a bem da verdade, não era inédita. No outro lado do Atlântico, em Londres, britânicos já tinham se unido em fins de 1984 no grupo Band Aid para lançar “Do they know it’s Christmas?” (Eles sabem o que é Natal?). O single foi proposto pelo cantor e compositor Bob Geldof e pelo guitarrista Midge Ure para destinar recursos a uma Etiópia mergulhada numa crise severa de desnutrição e morte, sobretudo, de crianças e mulheres. Participaram nomes como Bono, Boy George, George Michael, James Taylor, Paul McCartney, Paul Young, Phil Collins e Sting.

Pouco tempo depois, o músico, ator e ativista Harry Belafonte, marcante no movimento pelos direitos civis dos negros, instou o show business americano a repetir a ação. Ele procurou o produtor Ken Kragen, que convocou Lionel Ritchie, que chamou Quincy Jones e Stevie Wonder e Michael Jackson. Kenny Rogers embarcou. E vieram Al Jareau, Bruce Springsteen, Cindy Lauper, Daryl Hall, Diana Ross, Dionne Warwick, Huey Lewis, Kim Carnes, Paul Simon, Tina Turner. E Ray Charles. E Bob Dylan. Prince e Madonna ficaram de fora.

Num enredo épico, Lionel e MJ compuseram a canção em poucos dias, músicos e técnicos foram convocados, quatro dezenas de artistas receberam fitas com a composição, e a gravação foi marcada para o fim da noite de 28 de janeiro de 1985. A data era estratégica porque quem não vivia em Los Angeles lá estaria para a festa de entrega do American Music Awards. O documentário narra bem o esforço para pôr de pé e a emoção de concretizar aquela madrugada icônica. Astros e estrelas foram convidados a deixar o ego do lado de fora do estúdio. Na medida do possível, obedeceram. O resto é História.

“We are the world” tornou-se mundialmente conhecida. Na esteira de Band Aid e USA for Africa, multiplicaram-se as iniciativas de aproximação de artistas, celebridades e organizações da sociedade civil para chamar a atenção e reunir fundos para ações humanitárias, ambientais e sanitárias. O concerto Live Aid bebeu da fonte.

No Brasil, brotou a iniciativa SOS Nordeste, também de 1985. Os maiores nomes da MPB se reuniram para gravar “Chega de mágoa”, composição assinada por Gilberto Gil e uma dezena de parceiros para compor um fundo de ajuda a vítimas da seca na região. Dá para chamar de “We are the world” nacional, tamanha a constelação: de Chico Buarque a Tim Maia, de Djavan a Nara Leão, de Alceu Valença a Maria Bethânia, de Caetano Veloso a Rita Lee, de Beth Carvalho a Moraes Moreira, de Baby do Brasil (à época, Consuelo) a Luiz Melodia, de Belchior a Elizeth Cardoso, de Alcione a Tom Jobim, de Elza Soares a Lulu Santos, de João Nogueira a Gal Costa, de Martinho da Vila a Gonzaguinha, de Edu Lobo a Emilinha Borba, de Paulinho da Viola a Fagner, de Luiz Gonzaga a Roberto Carlos. O disco, um compacto duplo, teve tiragem de 500 mil cópias numeradas, trocadas por um depósito de 10 mil dinheiros da época na Caixa Econômica Federal.

Em videoclipe, “Chega de mágoa” foi exaustivamente exibido. Certamente inspirou outras campanhas. Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza lançou a Campanha da Fome, que contou também com participação de artistas e um grande show para arrecadação de alimentos nos moldes do Live Aid. Parte dessa história protagonizada pelo sociólogo está contada na série “Betinho: no fio da navalha” (Globoplay, 2023). Dali em diante, o combate à miséria jamais saiu da lista de prioridades do país. E foi dar, em 2003, no Fome Zero; hoje, no Bolsa Família.

O engajamento de artistas, personalidades, formadores de opinião e organizações do movimento social é importante para chamar a atenção para grandes e urgentes mazelas nacionais ou globais. A mobilização da sociedade faz soar o alerta entre autoridades, nas repartições. Mas a superação dos problemas não se dá por episódios de solidariedade; depende do Estado. Como destaca Wanda Engel, educadora, ex-ministra de Assistência Social, uma das responsáveis pela implantação do Cadastro Único (ferramenta essencial às políticas de transferência de renda):

— As campanhas são essenciais para as pessoas tomarem conhecimento dos problemas, assumi-los, enfrentá-los. Elas têm um papel. Mas transformação só vem com mudanças culturais e, especificamente, mudanças de políticas. Na essência, políticas públicas.


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