Correio Braziliense
Há fortes indícios de que se tramou, de forma
organizada e em momentos sequenciais orquestrados, a derrubada do regime
democrático no Brasil. Desde 1964, o país não enfrentava a ameaça de um novo
golpe vitimando a democracia
Os eventos desvendados na semana passada
pelas investigações da Polícia Federal apontam para fatos extremamente graves
que ocorreram no Brasil nos dois últimos anos, ao menos, da gestão do
presidente Jair Bolsonaro. Há fortes indícios de que se tramou, de forma
organizada e em momentos sequenciais orquestrados, a derrubada do regime
democrático no Brasil. Desde 1964, o país não enfrentava a ameaça de um novo
golpe vitimando a democracia. Após o processo de redemocratização, as elites e
a população, embora de forma reticente e inconstante, como mostram dados de
opinião pública, abraçaram o regime democrático.
Isso mudou dramaticamente de 2013 em diante, chegando ao seu ápice no governo Bolsonaro. É fato que o país viveu intenso processo de desgaste do regime, com um recrudescimento de enclaves autoritários na sociedade e nas elites políticas. A retórica autoritária voltou a ser bradada. Os violentos protestos de rua em 2013, os primeiros em sua magnitude após décadas, desencadearam um processo acentuado de queda do apoio popular aos políticos no poder e de insatisfação com o funcionamento das instituições democráticas. O humor da população azedou.
Foram vários os episódios subsequentes que
pioraram a situação, incluindo crises políticas e econômicas simultâneas e
continuadas, imensa instabilidade política que culminou no governo interrompido
de Dilma Rousseff e fracassado de Michel Temer, o qual passou mais tempo se
defendendo de tentativas de remoção do cargo do que aprovando propostas
legislativas.
A turbulência política resultou na eleição de
um governo de inclinação populista, antissistêmico, que, claramente, se
distanciava dos partidos políticos que governaram o Brasil, e que oferecia um
forasteiro (outsider) como alternativa de mudança profunda. No poder, Bolsonaro
seguiu sua estratégia de ecoar as críticas às instituições democráticas,
respaldado por dados de opinião pública que apontam enorme insatisfação popular
com o Congresso, com partidos políticos e, crescentemente, com o Judiciário. O primeiro
alvo foi o Congresso e o dito toma lá dá cá, do presidencialismo de coalizão.
Quando o risco de um impeachment se impôs,
mudou de estratégia e abraçou o Centrão. Voltou, então, seus canhões para o
vizinho na Praça dos Três Poderes, o Supremo Tribunal Federal. Sempre apoiado
por um séquito político cada vez maior, que Bolsonaro ajudaria a eleger em
2022. Seu partido, o Liberal, tem hoje a maior bancada na Câmara e a segunda no
Senado. Vários governadores militam em seu campo. Trata-se de um movimento
nacional.
Os enclaves autoritários ganharam as ruas e
voz. A participação do ex-presidente em protestos contra as políticas de
enfrentamento da pandemia de covid-19, quando apoiadores pediam golpe militar
com Bolsonaro no poder, é um exemplo. Outro é a invasão de Brasília por
caminhoneiros defendendo golpe no 7 de setembro de 2021, minuciosamente
organizada.
O risco iminente de perder a eleição aumentou
a tentação do golpe, como mostram as falas de diversos atores do governo
passado. As eleições de 2022 foram marcadas pelo esforço de deslegitimação do
processo de apuração e contagem de votos no Brasil, promovido por Bolsonaro.
Algo que custou sua elegibilidade em 2026.
Após uma derrota apertada nas eleições, a
menor margem de diferença para o vencedor em nossa história recente, as ameaças
à democracia se intensificaram. Pessoas fecharam estradas, acamparam em frente
a quartéis militares, depredaram o Plano Piloto duas vezes, falharam em
atentado terrorista no aeroporto da capital. Estopins para o caos, justificando
a necessidade de intervenção militar. Bolsonaro não entregou a faixa
presidencial a Lula.
Claramente, a sucessão de eventos não foi
devaneio de alguns. As instituições democráticas no Brasil sofreram forte
atentado porque uma parte relevante da população não crê nelas há muito tempo.
As crises políticas e econômicas de 2013 em diante, acentuaram esse quadro.
Ambientes assim são propícios para o recrudescimento de enclaves autoritários.
Pior, a polarização atual leva apoiadores de Bolsonaro a defenderem o
ex-presidente incondicionalmente. Para esses, ele é vítima de perseguição.
Bolsonaristas alegam o uso político da ação policial para prejudicá-los nas
eleições municipais.
A narrativa está posta e não é favorável às
instituições democráticas, que para essa parcela grande da população não
funcionam bem, muito pelo contrário. Os elementos para a continuidade da crise
da democracia no Brasil seguem presentes e seguimos sendo terreno fértil para
aventuras golpistas. A ilusão de que as instituições funcionam é ledo engano e,
mais, perigosa.
*Lucio Rennó, professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB)
Concordo.
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