Correio Braziliense
A velha doutrina de segurança nacional se
encaixava como uma luva na trajetória histórica de combate aos “inimigos
internos”, mas entrou em colapso quando os EUA apoiaram o Reino Unido contra a
Argentina
Está disponível no site do governo federal (www.gov.br) o Livro Branco de Defesa Nacional
(LBDN) encaminhado ao Congresso em 20 de julho de 2020, ou seja, há quase
quatro anos. Como diz a sua apresentação, “é o mais completo e acabado
documento acerca das atividades de defesa do Brasil”. Apresentado em meados do
governo de Jair Bolsonaro, o texto original fora concluído em 2012. Os
ex-ministros da Defesa Nelson Jobim e Raul Jungmann estão entre os que mais se
empenharam para que fosse consolidado.
O documento dorme nas gavetas do Congresso, nem os políticos nem os militares quiseram discutir esse assunto: “vocês não mexem conosco que também não mexemos com vocês”. Errado. Enquanto o Congresso se omitia, o ex-presidente Jair Bolsonaro trabalhava dia e noite para desmoralizar o processo eleitoral brasileiro, de onde vem o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, com o propósito de implantar um regime “iliberal” e se manter no poder, com apoio das Forças Armadas. Para isso, cevou o Congresso com verbas e tentou subjugar o Supremo Tribunal Federal (STF).
Bolsonaro supostamente tentou dar um golpe de
estado antes, durante e depois das eleições de 2022. Na linha do ex-governador
carioca Carlos Lacerda (UDN): “O sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser
candidato à presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar
posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de
governar”(Advertência oportuna, Tribuna da Imprensa, 1º de junho de 1950). Esse
roteiro viria a se repetir como farsa em 8 de janeiro do ano passado.
Lacerda, então governador da antiga
Guanabara, foi um dos líderes políticos do golpe de 1964 e mirava as eleições
presidenciais de 1965, que foram suspensas. Teve seus direitos políticos
cassados. Sucessivos generais, por 20 anos, se revezaram na Presidência:
Castelo Branco, Costa e Silva, Emílio Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo.
Segundo o falecido historiador Nelson Werneck Sodré, autor do clássico História
Militar do Brasil, “gostaram do poder”. Parece que agora os nossos políticos
aprenderam a lição. Não embarcaram no golpe de Bolsonaro.
A força da história se faz presente quando
uma velha contradição não se resolve. Assim é a questão militar no Brasil,
entre outras coisas, porque o Estado antecedeu a nação. O mito fundador de
nosso Exército é a Batalha de Guararapes (1648/49), quando os holandeses foram
expulsos do Brasil, mas sua constituição histórica se deu ao reprimir duramente
movimentos separatistas e/ou republicanos (Revolução Pernambucana, Confederação
do Equador, Cabanagem, Balaiada, Farrapos, por exemplo) para manter a ordem,
sempre que a justiça federal não eram suficientes para afirmar o poder central
nas províncias.
Nova doutrina
Massacrado o povo, o velho Senado, com sua
“política de conciliação”, lamberia as feridas das elites derrotadas. Foi assim
que se manteve a nossa integridade territorial e se formou o Estado brasileiro.
Entretanto, após a Guerra do Paraguai (1864-1870) e Abolição (1888), o
protagonismo militar na política brasileira viria a emergir com toda força. No
ano seguinte, os militares destituíram o imperador Pedro II e proclamaram a
República. O golpismo bem-sucedido em 1989, 1930 e 1964 viria a ser sua principal
característica. Tomara que os acontecimentos de 8 de janeiro do ano passado
representem o fim desse longo ciclo histórico, que deveria ter se esgotado com
a Constituição de 1988, mas teve sua recidiva após a eleição de Jair Bolsonaro,
em 2018.
A causa da recidiva foi a divisão ideológica
das Forças Armadas, que sempre provoca quebra de hierarquia e indisciplina. Foi
assim no Movimento Tenentista (década de 1920), na Aliança Nacional Libertadora
(1935) e após a dissolução da Força Expedicionária Brasileira (FEB), em 1945.
Durante o regime militar, após o grande expurgo de militares legalistas, a
coesão se restabeleceu tendo por base o anticomunismo da Guerra Fria, que
consolidara sua centralidade na doutrina militar.
O Livro Branco representa uma nova doutrina
de defesa, em bases democráticas e pacifistas. Ultrapassa a velha doutrina de
segurança nacional do regime militar, que se encaixava como uma luva na
trajetória histórica de combate aos “inimigos internos”, mas entrou em colapso
com a Guerra das Malvinas, entre a Argentina e o Reino Unido, quando o aliado
principal, os Estados Unidos, apoiou diplomática e militarmente os ingleses e
não os argentinos. Essa nova doutrina de defesa, contra a qual se insurgiram Bolsonaro
e seus generais palacianos, que conseguiram dividir ideologicamente as Forças
Armadas, não foi assimilada plenamente nas casernas, nem chegou ao conhecimento
da sociedade civil.
Augusto Heleno e Braga Neto são de uma
geração que ingressou nas escolas militares quando a carreira era mais do que
uma via de ascensão à alta classe média, mas o caminho de acesso ao poder
político central. Por isso, são reacionários e saudosistas do regime militar,
sonham com um passado idealizado. O fracasso de 8 de janeiro pode ser o fim de
um ciclo histórico, se a nova elite militar em formação, responsável pela sua
elaboração, liderar a implantação da nova doutrina e a coesão das Forças
Armadas, com base nos altos estudos, na hierarquia e na disciplina, e não
apenas no adestramento militar, como acontece com as forças especiais.
Um belo artigo!
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