CartaCapital
Os detratores desconsideram que a indústria é
a consagração do “método de inventar” e que agora incumbe aos homens reinventar
a vida social
Nova Indústria Brasil desencadeou um maremoto
de manifestações negativas dos economistas liberais e de seus súditos na mídia.
As inquietações dos “especialistas” aprestaram-se em desqualificar a iniciativa
do governo Lula como
“coisa do passado.”
Os sabichões falam de passado como se
soubessem o que estão dizendo. A ignorância histórica dos bacanas é evidente,
contundente e, ademais, lamentável. A história do capitalismo está
marcada por sucessivas e persistentes iniciativas dos Estados conhecidas como
políticas industriais.
Poderíamos começar com a criação do Banco da Inglaterra, em 1694, e suas políticas de financiamento à manufatura na era da passagem do Mercantilismo para a Revolução Industrial. O surgimento da indústria na Pérfida Albion “completou” a estrutura da economia mercantil-monetário-financeira capitalista.
Mais tarde viriam as experiências de
Alexander Hamilton no Estados Unidos e Bismark na Alemanha. Há que se registrar
também a Revolução Meiji, que trouxe o Japão para o time dos industrializados
mediante políticas do Estado.
Sinto-me compelido a repetir o que já escrevi
a respeito da Revolução Industrial. Para contestar a opinião de um sábio
da Crematística disparei minhas perplexidades a respeito da alegada
desimportância da indústria.
A ignorância histórica de economistas
liberais e da mídia é contundente e lamentável.
Uma frase do sabichão incitou minha decisão
de alinhavar considerações sobre o tema da indústria e de sua importância. Ele
disparou: “Não me parece haver evidência empírica de que a indústria seja
especial sob algum critério”.
Não? O historiador Carlo Cipolla discorda. Em
sua investigação sobre a ruptura econômica e social produzida pela assim
chamada Revolução Industrial, Cipolla escreveu: “A Revolução Industrial
transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por
energia inanimada”. Imagino que a turma do passadismo econômico pretenda
submeter a constatação de Cipolla a um teste econométrico, baseado numa série
temporal que colhe informações desde o Neolítico até as primeiras décadas do
século XIX.
À falta de tão requintados procedimentos da
positividade empirista, só nos resta recorrer aos pacientes trabalhos de Angus
Maddison. No livro The World Economy, ele estima que, entre 1820 e 1913, a
renda per capita na Grã-Bretanha cresceu a uma taxa três vezes maior do que
aquela apresentada no período 1700-1820. A publicação de A Riqueza das Nações e
o aperfeiçoamento para fins comerciais da máquina a vapor de Newcomen por James
Watt no mesmo ano, 1786, talvez forneçam testemunho ainda mais confiável a respeito
da radical ruptura no modo de produzir e nas formas de regulação da vida
econômica e social.
Aí nasce, de fato, o capitalismo, logo
adiante sobranceiro em sua autodeterminação, alcançada mediante a constituição
das forças produtivas ajustadas à sua natureza irrequieta. Assentada sobre suas
bases materiais, a economia da indústria promove a nova sociabilidade, aquela
amparada nas realidades do assalariamento generalizado e nas aspirações de
liberdade e de autonomia individual. Na mesma toada, o industrialismo
capitalista suscitou o desenvolvimento da metrópole, tabernáculo da
modernidade, cuja efervescência cultural, não raro, exprime as misérias sociais
nascidas das turbulências do progresso. É aconselhável consultar, entre outros,
Balzac, Dickens, Baudelaire, Flaubert e Zola.
O surgimento da indústria como sistema de
produção apoiado na maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico, move a
divisão social do trabalho e engendra diferenciações na estrutura produtiva,
promovendo encadeamentos intra e intersetoriais. Os autores do século XIX
anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos
serviços funcionais gestados no rastro da expansão da grande empresa industrial
e promovidos pela racionalização e burocratização dos métodos administrativos.
O avanço tecnológico livra progressivamente a
agricultura dos caprichos da natureza. Da mesma forma, há que se considerar as
relações umbilicais entre a Revolução Industrial e a revolução nos Transportes
e nas Comunicações. É reconhecida a mútua fecundação entre a constituição do
setor de bens de produção – apoiado nos avanços da metalurgia e da mecânica – e
a expansão da ferrovia e do navio a vapor. A intensificação da introdução dos
métodos “industriais” na agricultura e nos serviços promoveu o que convencionamos
qualificar de hiperindustrialização.
No mesmo passo, já no fim do século XIX, a
aceleração do tempo e o encurtamento do espaço foram acompanhados pelas
artimanhas da primeira globalização financeira. Essa reordenação da economia
exigiu uma resposta também pronta dos países retardatários. Para a Alemanha de
Bismarck, para os Estados Unidos de Alexander Hamilton e para os japoneses da
revolução Meiji, a industrialização não era uma questão de escolha, mas uma
imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades.
A industrialização dos retardatários
confunde-se com as inovações da Segunda Revolução Industrial. O aço, a
eletricidade, o motor a combustão, a química e a farmacêutica são os
protagonistas dos combates competitivos da Belle Époque. As transformações financeiras
do crepúsculo do século XIX promoveram a centralização do capital requerida
para o aumento das escalas de produção implícitas nas novas tecnologias. Isso
seria inconcebível sem a concentração das relações de débito-crédito nos bancos
de depósito e nas proezas dos bancos de negócios, sôfregos em “fixar”
capital-dinheiro em novos investimentos.
O surgimento da indústria apoiado na
maquinaria carrega nos ossos o progresso técnico
É descuido imperdoável ignorar que algumas
inovações da Segunda Revolução Industrial do fim do século XIX – especialmente
a ampliação da capacidade dos navios a vapor, o navio frigorífico e o telégrafo
– “produziram” os produtores de alimentos e matérias-primas nas regiões
periféricas. A rápida escalada industrial dos Estados Unidos e a incorporação
da Argentina, da Austrália, da Nova Zelândia e do Brasil reconfiguraram a
divisão internacional do trabalho e atraíram milhões de trabalhadores lançados
na miséria pela depressão da agricultura europeia.
Depois do surgimento do capitalismo
industrial, mais precisamente depois de 1850, diz Cippola, o passado não era
apenas o que havia passado. O passado estava morto. A partir de então, o
Prometeu Desacorrentado foi incansável em seu labor. Empenha-se agora na
“reinvenção” da natureza e na criação das técnicas que poderiam ensejar a
proteção do ecúmeno.
Aí estão as inovações da inteligência
artificial, da biotecnologia, das alterações nas estruturas atômicas dos
materiais, da impressão em 3D, das novas energias limpas. Como disse Alfred Whitehead:
“O homem inventou o método de inventar”. Resta aos homens (no plural) a
incumbência de reinventar a vida social para fruir as liberdades e benesses
oferecidas pelas proezas de Prometeu.
Uma revisita ao passado ajudaria os sabichões
a encontrar o presidente Eisenhower. No início dos anos 50, ele ensinou que o
desenvolvimento americano do pós-Guerra se valeu do complexo
industrial-militar. Reconheceriam, também, que o complexo industrial-militar,
ao longo dos anos, estimulou o surgimento das empresas inovadoras do Vale do
Silício. Essa forma de política industrial e tecnológica perdura até hoje,
atravessando incólume a transição entre governos democratas e republicanos.
As peripécias “intervencionistas” nos Estados
Unidos são muitas e atuais em seu “atraso”. The Entrepreneurial State:
Debunking Public vs. Private Myths, de Mariana Mazzucato, e Subsidies to Chinese
Industry: Capitalism, Business Strategy and Trade Policy, de Usha Haley e
George Haley, tratam das relações entre as empresas e as políticas
governamentais. Recorrem a uma exaustiva investigação empírica, sem apelar para
o blablablá ideológico, não raro hipócrita, da falsa oposição entre Estado e
mercado no capitalismo contemporâneo.
Os estudos cuidaram de sublinhar as relações
peculiares entre os Estados Nacionais, os sistemas empresariais, os programas
de inovação tecnológica e a “inserção internacional”. Procuraram chamar atenção
para a centralidade da “organização capitalista”, em que prevalecem nexos,
digamos, “cooperativos” nas relações entre empresas e burocracias civis,
militares e de segurança encarregadas de fomentar e administrar o sistema de
avanço tecnológico (P&D).
No caso chinês, é crucial a presença dos
bancos públicos no provimento de crédito para permitir a apropriação da
tecnologia, mediante a utilização das empresas estatais para a formação de
joint ventures com o capital estrangeiro e promover a “administração
estratégica” do comércio exterior. Essa arquitetura institucional não apenas
assegurou excepcionais taxas de investimento e acumulação de capital, como
também ensejou programas de “graduação” tecnológica.
A ação estatal cuidou, ademais, dos
investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como
plataformas destinadas a apoiar a constituição de grandes conglomerados
industriais preparados para a batalha da concorrência global. Não é difícil perceber:
as estratégias chinesas de expansão acelerada, o impulso exportador, a rápida
incorporação do progresso técnico e uma forte coordenação do Estado foram
inspirados no sucesso anterior de seus vizinhos, sócios e competidores.
Ao examinar essas relações nos Estados
Unidos, Mariana Mazzucato desmascara o mito dos “gênios de garagem”
e reduz a pó as lendas marqueteiras que celebram o papel do venture capital. Mazzucato
descreve minuciosamente o roteiro para o sucesso da Apple, de Steve Jobs, e seus iPads e
iPods. A ação do Estado não só garantiu o abastecimento do capital paciente e
capaz de encarar o risco da inovação, como também ajudou a coordenar as
relações entre a grande empresa integradora e seus fornecedores.
Os empreendimentos de plataforma encarnam,
hoje, a modalidade mais aperfeiçoada e avançada do Capitalismo Industrial. Além
dos gigantes numéricos, como Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft,
as plataformas prestam serviços em todos os “setores”– finança, hotelaria,
transportes, comercialização e distribuição de mercadorias, entrega de comida
em domicílio. Aí estão em pleno vigor as plataformas dos Ubers e dos iFoods da vida. Elas
constituem o ápice da hiperindustrialização.
*Publicado na edição n° 1296 de CartaCapital,
em 07 de fevereiro de 2024.
Perfeito
ResponderExcluirRecomendável a leitura de Celso Rocha de Barros, acima.
ResponderExcluirExcelente! Uma aula de história econômica! Parabéns ao autor, e ao blog que divulga seu trabalho!
ResponderExcluirLendo e aprendendo.
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