Folha de S. Paulo
Já é banal desconstruir a coerência factual
pela fragmentação dos acontecimentos
Agora que boato, rumor e fake news, cartas viciadas do jogo político, ganharam status oficial de ameaça às eleições, vale reexaminar o estatuto do falso. Ponto de partida é a suspeita de jornalistas americanos de que a investigação aprofundada sobre fake news possa contribuir para fortalecê-las, na medida em que a busca da refutação não vá além da própria internet, seu berço. Resumo da suspeita: como pode a mentira desmentir-se?
No século 17, o moralista francês La Bruyère
descomplicava a questão: "O contrário das notícias que correm costuma ser
a verdade" ("le contraire des bruits qui courent, c´est souvent la
vérité"). Tempo depois, a lógica pediu a palavra. O inglês Conan Doyle pôs
na boca de seu Sherlock
Holmes que "quando se elimina o impossível, o que fica,
por mais improvável, é a verdade."
Com La Bruyère, notícia era ruído, longe da
verossimilhança que a imprensa moderna elevaria a regra profissional. Factoide
e boato foram logicamente descartáveis, mas sem abominação moral. A famosa e
falsa narrativa radiofônica de invasão alienígena, eticamente condenável, não
impediu Orson Welles de despontar para a glória.
A questão atual, complexa como digerir um
elefante, não se resolve por fact-checking, um mata-formigas. Falsificam-se as
próprias checagens. Problema mesmo é a naturalização do fluxo artificial, em
que mentiras e deep-fake são linguagem de outra realidade, superposta ao
real-histórico. Na rede, a substância do que se diz não pertence à consciência
psicológica, mas à potência lógica da máquina, que a ultrapassa. Verdade é de
menos, basta a aderência tátil do sujeito.
O que vigora na empiria científica, assim
como no senso comum ilustrado, é a verdade positivista dos fatos. De certo
modo, entretanto, a rede refaz o mundinho de La Bruyère, onde bastaria
colocar-se a contrário dos rumores para encontrar um evento moralmente
plausível.
Hoje, é insuportável a desigual realidade
externa, da qual se tenta fugir. Os fatos exaurem a consciência comum, fazendo
da mentira droga de escape. Verdade é fumaça offline, cara ao espírito liberal,
mas reclame hipócrita na politicagem eleitoral.
Desinformação não é mais palavra-chave: o
tempo é de pós-informação, o mais puro e obsceno controle social. Não há
limites para a inteligência artificial generativa. Já é banal desconstruir a
coerência factual pela fragmentação dos acontecimentos, redefinindo notícia
como uma fogueira emocional que cada adicto está livre para alimentar na mídia
social com seu pedaço de lenha moral.
Saber que informação online é o caos do
sentido ao menos relativiza o falatório, em favor de contramedidas cívicas. Na
real, Moraes cobra a regulamentação das redes, Lula derruba as grades da praça.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
Texto difícil. Fiquei na dúvida se o colunista informou ou se desinformou...
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