terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Luiz Schymura* - O árduo trabalho para manter as contas públicas em ordem

Valor Econômico

Os desafios são grandes, mas o cuidado e a atenção com o tema vêm crescendo a cada dia

Houve muito agito no campo fiscal ao longo do período que abrange o fim de 2022 e todo o ano de 2023. A “emenda da transição” (EC 126 de dezembro de 2022) é o marco do início da movimentação. Dentro do texto aprovado, duas medidas merecem registro: a normalização do volume das despesas discricionárias, impedindo o apagão da máquina pública; e a fixação, de forma permanente, do Bolsa Família num valor mais elevado, atendendo a um pleito que a cada dia ganhava mais adeptos entre os formadores de opinião e a classe política. Na sequência, houve a implementação do novo arcabouço fiscal, cujo papel crucial de “ancorar” as expectativas de solvência das contas públicas foi exitoso. Não parou por aí. Um grande pacote de medidas de reoneração e aperfeiçoamento do sistema tributário também foi sancionado, e o ano se encerrou com uma rodada de redução de passivos fiscais: pagamento de precatórios atrasados e acordo com Estados sobre a indenização relativa à desoneração de ICMS que estava em vigor desde o governo anterior. Além disso, houve um importante feito: a tão aguardada emenda constitucional da reforma da tributação indireta foi finalmente aprovada.

Contudo, as várias ações realizadas no âmbito fiscal não se traduziram em melhora no resultado primário no ano passado. Na verdade, houve piora de 2,6 pontos percentuais (pp) do PIB no indicador, saindo de +0,5% em 2022 para -2,1% do PIB em 2023. Fator importante por trás dessa queda foi o pagamento em dezembro dos precatórios atrasados, da ordem de 0,85% do PIB, e a compensação aos Estados pelas desonerações de combustíveis, algo próximo a 0,25% do PIB. Assim, sem esses dois desembolsos, o resultado primário teria sido de -1% do PIB. Montante que o Ministério da Fazenda imaginava entregar no fim do ano passado.

Dessa forma, expurgando os efeitos extraordinários dos precatórios e da compensação dos Estados, o resultado primário teria piorado, entre 2022 e 2023, 1,5 pp do PIB. É fácil constatar que esse tombo teve dois protagonistas: a queda da receita líquida em 0,9 pp do PIB, proveniente de fatores como a perda de arrecadação com o setor extrativo mineral e o fim do ciclo de commodities; e o aumento de 0,6 pp do PIB devido à expansão do Bolsa Família.

As despesas discricionárias, por seu turno, que em 2022 atingiram o nível historicamente deprimido de 1,5% do PIB, encerraram 2023 em 1,7% do PIB, abaixo dos níveis pré-pandêmicos de 2019 e 2020.

Como se vê, no primeiro ano do atual governo foi dada uma cara nova ao campo fiscal. Diante do quadro positivo até aqui, o que esperar à frente? Pelo que tudo indica, este ano não será muito diferente do que se viu em 2023. A agenda fiscal continuará ocupando espaço expressivo do noticiário econômico. Embora muita coisa tenha sido realizada no ano passado, ainda há muito a ser feito. Seja como for, sem perder de vista as carências do país, é necessário perseverar num caminho que traga segurança quanto à estabilidade estrutural das contas públicas. Não é tarefa fácil. A trajetória tem que ser construída aos poucos, passo a passo. A manutenção do entendimento de que há solvência fiscal requer muito diálogo, muita negociação e, principalmente, ação.

Nessa linha, hoje duas matérias despontam na pauta de discussão e aguardam definição: a desoneração da folha salarial e a meta do primário para 2024. Ambos os temas possuem nuances que extrapolam os aspectos simplesmente financeiros.

Quanto ao imbróglio da desoneração da folha de 17 setores produtivos, estendida pelo Congresso na contramão dos planos do Executivo, o desafio é grande. O ministro Fernando Haddad argumentou no programa “Roda Viva” sobre suas tratativas com as principais lideranças do Congresso Nacional: “Nenhum líder me disse que pretendia eternizar esse privilégio para 17 setores. Alguém vai pagar por esses 17 setores, você vai ter que onerar outros setores para pagar a conta”.

Pelo visto, a disputa gira em torno da definição de como será e em que velocidade se dará a retomada da reoneração da folha. Os próximos dias serão marcados, portanto, pela negociação entre Executivo e Legislativo buscando selar um acordo. Não resta dúvida que o objetivo de lado a lado é preservar o ambiente político favorável que tornou possível a aprovação da agenda tributária recente.

Como observa meu colega Manoel Pires, seja qual for o modelo de tributação da folha que venha a ser aprovado, ele deve ser compatível com a segunda fase da reforma tributária, relativa aos impostos sobre a renda e salários. A emenda da reforma tributária do consumo aprovada no ano passado determina que o governo encaminhe a reforma da tributação da renda até o fim de março.

Em relação à meta fiscal para 2024, por seu turno, tudo leva a crer que o alvo de zerar déficit primário não será atingido. A expectativa de mercado tem apontado para o resultado primário em torno de -0,8% do PIB. Assim, de acordo com o que foi estabelecido no novo arcabouço fiscal, o descumprimento da meta num ano acarreta penalidades no ano subsequente. De qualquer modo, independentemente do teor das restrições a serem impostas, parece não ser politicamente recomendável que, já no primeiro ano de vigência do novo instituto fiscal, os mecanismos de descumprimento sejam acionados. Além de que parece haver compreensão de parte expressiva dos agentes econômicos de que a meta pode ser “afrouxada”. Mas em quanto? Essa é a questão a ser exaustivamente trabalhada para que seja respondida provavelmente em março.

No entanto, como lembra meu colega Bráulio Borges, em março não haverá ainda uma compreensão clara da arrecadação a ser obtida ao longo de 2024. Afinal, além da costumeira incerteza quanto ao comportamento da economia, há ainda dúvidas quanto ao potencial arrecadatório de mudanças importantes feitas em 2023 no arcabouço fiscal, como é o caso da retomada do voto de qualidade pelo governo no Carf.

Enfim, os desafios são grandes no campo fiscal, mas o cuidado e a atenção com o tema vêm crescendo a cada dia.

*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre 

 

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