Valor Econômico
Os desafios são grandes, mas o cuidado e a
atenção com o tema vêm crescendo a cada dia
Houve muito agito no campo fiscal ao longo do período que abrange o fim de 2022 e todo o ano de 2023. A “emenda da transição” (EC 126 de dezembro de 2022) é o marco do início da movimentação. Dentro do texto aprovado, duas medidas merecem registro: a normalização do volume das despesas discricionárias, impedindo o apagão da máquina pública; e a fixação, de forma permanente, do Bolsa Família num valor mais elevado, atendendo a um pleito que a cada dia ganhava mais adeptos entre os formadores de opinião e a classe política. Na sequência, houve a implementação do novo arcabouço fiscal, cujo papel crucial de “ancorar” as expectativas de solvência das contas públicas foi exitoso. Não parou por aí. Um grande pacote de medidas de reoneração e aperfeiçoamento do sistema tributário também foi sancionado, e o ano se encerrou com uma rodada de redução de passivos fiscais: pagamento de precatórios atrasados e acordo com Estados sobre a indenização relativa à desoneração de ICMS que estava em vigor desde o governo anterior. Além disso, houve um importante feito: a tão aguardada emenda constitucional da reforma da tributação indireta foi finalmente aprovada.
Contudo, as várias ações realizadas no âmbito
fiscal não se traduziram em melhora no resultado primário no ano passado. Na
verdade, houve piora de 2,6 pontos percentuais (pp) do PIB no indicador, saindo
de +0,5% em 2022 para -2,1% do PIB em 2023. Fator importante por trás dessa
queda foi o pagamento em dezembro dos precatórios atrasados, da ordem de 0,85%
do PIB, e a compensação aos Estados pelas desonerações de combustíveis, algo
próximo a 0,25% do PIB. Assim, sem esses dois desembolsos, o resultado primário
teria sido de -1% do PIB. Montante que o Ministério da Fazenda imaginava
entregar no fim do ano passado.
Dessa forma, expurgando os efeitos
extraordinários dos precatórios e da compensação dos Estados, o resultado
primário teria piorado, entre 2022 e 2023, 1,5 pp do PIB. É fácil constatar que
esse tombo teve dois protagonistas: a queda da receita líquida em 0,9 pp do
PIB, proveniente de fatores como a perda de arrecadação com o setor extrativo
mineral e o fim do ciclo de commodities; e o aumento de 0,6 pp do PIB devido à
expansão do Bolsa Família.
As despesas discricionárias, por seu turno,
que em 2022 atingiram o nível historicamente deprimido de 1,5% do PIB,
encerraram 2023 em 1,7% do PIB, abaixo dos níveis pré-pandêmicos de 2019 e
2020.
Como se vê, no primeiro ano do atual governo
foi dada uma cara nova ao campo fiscal. Diante do quadro positivo até aqui, o
que esperar à frente? Pelo que tudo indica, este ano não será muito diferente
do que se viu em 2023. A agenda fiscal continuará ocupando espaço expressivo do
noticiário econômico. Embora muita coisa tenha sido realizada no ano passado,
ainda há muito a ser feito. Seja como for, sem perder de vista as carências do
país, é necessário perseverar num caminho que traga segurança quanto à estabilidade
estrutural das contas públicas. Não é tarefa fácil. A trajetória tem que ser
construída aos poucos, passo a passo. A manutenção do entendimento de que há
solvência fiscal requer muito diálogo, muita negociação e, principalmente,
ação.
Nessa linha, hoje duas matérias despontam na
pauta de discussão e aguardam definição: a desoneração da folha salarial e a
meta do primário para 2024. Ambos os temas possuem nuances que extrapolam os
aspectos simplesmente financeiros.
Quanto ao imbróglio da desoneração da folha
de 17 setores produtivos, estendida pelo Congresso na contramão dos planos do
Executivo, o desafio é grande. O ministro Fernando Haddad argumentou no
programa “Roda Viva” sobre suas tratativas com as principais lideranças do
Congresso Nacional: “Nenhum líder me disse que pretendia eternizar esse
privilégio para 17 setores. Alguém vai pagar por esses 17 setores, você vai ter
que onerar outros setores para pagar a conta”.
Pelo visto, a disputa gira em torno da
definição de como será e em que velocidade se dará a retomada da reoneração da
folha. Os próximos dias serão marcados, portanto, pela negociação entre
Executivo e Legislativo buscando selar um acordo. Não resta dúvida que o
objetivo de lado a lado é preservar o ambiente político favorável que tornou
possível a aprovação da agenda tributária recente.
Como observa meu colega Manoel Pires, seja
qual for o modelo de tributação da folha que venha a ser aprovado, ele deve ser
compatível com a segunda fase da reforma tributária, relativa aos impostos
sobre a renda e salários. A emenda da reforma tributária do consumo aprovada no
ano passado determina que o governo encaminhe a reforma da tributação da renda
até o fim de março.
Em relação à meta fiscal para 2024, por seu
turno, tudo leva a crer que o alvo de zerar déficit primário não será atingido.
A expectativa de mercado tem apontado para o resultado primário em torno de
-0,8% do PIB. Assim, de acordo com o que foi estabelecido no novo arcabouço
fiscal, o descumprimento da meta num ano acarreta penalidades no ano
subsequente. De qualquer modo, independentemente do teor das restrições a serem
impostas, parece não ser politicamente recomendável que, já no primeiro ano de
vigência do novo instituto fiscal, os mecanismos de descumprimento sejam
acionados. Além de que parece haver compreensão de parte expressiva dos agentes
econômicos de que a meta pode ser “afrouxada”. Mas em quanto? Essa é a questão
a ser exaustivamente trabalhada para que seja respondida provavelmente em
março.
No entanto, como lembra meu colega Bráulio
Borges, em março não haverá ainda uma compreensão clara da arrecadação a ser
obtida ao longo de 2024. Afinal, além da costumeira incerteza quanto ao
comportamento da economia, há ainda dúvidas quanto ao potencial arrecadatório
de mudanças importantes feitas em 2023 no arcabouço fiscal, como é o caso da
retomada do voto de qualidade pelo governo no Carf.
Enfim, os desafios são grandes no campo
fiscal, mas o cuidado e a atenção com o tema vêm crescendo a cada dia.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV
Ibre
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