O Globo
Abin paralela de Bolsonaro impõe a Lula
desafio de separar inteligência de espionagem
‘A gente nunca está seguro’, disse Lula na
segunda-feira à Rádio CBN de Recife,
quando questionado a respeito da operação da Polícia
Federal (PF) sobre a “Abin paralela”
— o esquema de espionagem ilegal que funcionou durante o governo de Jair
Bolsonaro, mas que a PF sustenta ter sido encoberto pela Abin de Lula.
No dia seguinte, a Presidência da República trocou cinco diretores da agência, incluindo o número 2, Alessandro Moretti, acusado pela PF de atuar para barrar as investigações. Moretti nega. Afirma até que foi ele o primeiro a abrir uma sindicância para averiguar as denúncias de arapongagem. Quem conhece bem o inquérito, porém, diz que há diversos documentos mostrando como e quando ele tentou impedir que a apuração avançasse.
Tais papéis ainda não vieram a público, mas
Lula parece convencido dessa versão, tanto que na CBN se referiu a Moretti como
“um cidadão que mantinha relação com o Ramagem”, referência ao diretor-geral da
Abin na gestão Bolsonaro, alguém cuja presença no governo seria inadmissível.
Pois bem, Moretti caiu. Em outubro, o
terceiro na hierarquia da Abin, Paulo Maurício Fortunato, já havia sido ejetado
quando agentes da PF encontraram US$ 171 mil em dinheiro vivo num cofre de sua
casa.
Até agora, o chefe de ambos, Luiz Fernando
Corrêa, permanece firme no posto — o que preocupa aliados de Lula e intriga a
cúpula da PF. Afinal, Corrêa também é alvo do mesmo inquérito, que promete ser
mais uma longa novela judicial com capítulos bombásticos dirigida por Alexandre
de Moraes. Lula sabe disso, mas não só mantém Corrêa, como diz ter “muita
confiança” nele.
O chefe da Abin tem uma relação antiga com
Lula. Comandou a própria Polícia Federal no primeiro governo Lula e ainda
dirigiu a segurança do comitê organizador dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio,
sob Dilma
Rousseff.
Mas a escolha dos dois subordinados o pôs na
alça de mira desde o início. Moretti, que era diretor de inteligência policial
da PF de Bolsonaro durante as eleições de 2022, acumulou desavenças com Andrei
Rodrigues, que era o chefe de segurança da campanha de Lula. Fortunato foi
diretor da Abin na gestão Ramagem, o que despertava muita desconfiança.
Nos primeiros meses do terceiro mandato, já
no comando da PF, Rodrigues fez chegar a Lula suas impressões sobre o número 2
e o número 3 da Abin, e senadores da base lulista protelaram por dois meses a
sabatina da Comissão de Relações Exteriores pela qual Corrêa precisava passar
para assumir o cargo, em protesto contra a dupla.
Ao depor, o indicado de Lula para a Abin foi
enfático na defesa dos auxiliares. Disse que Moretti era “leal, disciplinado e
de Estado” e que “provavelmente por ser inflexível na sua posição de Estado,
deve ter desagradado setores”. E afirmou que, se Fortunato, com seu currículo,
não prestava para o cargo a que era indicado, ele mesmo, Corrêa, também não
servia.
Dado o retrospecto da Abin, afirmações desse
tipo são em si uma temeridade. Com origem no Sistema Nacional de Informações, o
SNI da ditadura, a agência tomou a forma atual no governo Fernando
Henrique Cardoso, com o propósito de assessorar os presidentes da República
em questões relevantes para um chefe de Estado. Mas nunca se livrou da sombra
da arapongagem.
Seus agentes protagonizaram escândalos como
os do grampo do BNDES na
época da privatização das teles do governo FH, em 1998, e das escutas ilegais
no STF,
que derrubaram toda a cúpula da Abin em 2008, no segundo mandato de Lula. Na
era Dilma, em 2013, funcionários da agência foram acusados de monitorar
ilegalmente o porto de Suape, de olho na campanha de Eduardo Campos à
Presidência da República.
Tal histórico só mostra que, para certos
personagens da política, a função das agências de inteligência é a espionagem
pura e simples, a serviço do poderoso de turno.
Bolsonaro escancarou publicamente essa noção
ao reclamar, na famigerada reunião ministerial de abril de 2020, que a Abin não
servia para nada e ao dizer que, por isso, mantinha “um sistema particular” de
inteligência que “funcionava”.
A investigação da PF revelou que esse
“sistema particular” foi montado dentro do aparelho estatal, o que em tese
deveria pesar apenas contra o próprio Bolsonaro.
A suspeita de que tais desvios tenham sido
jogados para debaixo do tapete também sob Lula ainda precisa ser mais bem
esclarecida. O que já está evidente, porém, é o tamanho do desafio que a
reformulação do nosso sistema de inteligência representa — e quanto o governo
está perdido nessa seara. Sob esse aspecto, não estamos nada seguros.
Sei.
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