O Globo
Lula errou
feio ao comparar a tragédia da guerra em Gaza com o
Holocausto. A situação na Palestina se insere na lista de grandes atrocidades
presenciadas pela humanidade, mas não chega perto do genocídio promovido por
Adolf Hitler contra os judeus, como o presidente brasileiro sugeriu.
O governo Benjamin
Netanyahu também errou ao tentar encurralar a diplomacia brasileira
com uma emboscada diplomática e ataques destrambelhados — que podem até ter
atraído algum dividendo político interno, mas não alteram o status de Israel no
mundo.
Dois erros não produzem um acerto, mas parece ser isso o que pretende fazer o assessor especial do Palácio do Planalto para questões internacionais, Celso Amorim. Na última terça-feira, ele declarou que a fala de Lula “sacudiu o mundo e desencadeou um movimento de emoções” que pode ajudar a solucionar o conflito em Gaza.
Os fatos demonstram que ela sacudiu no máximo
os dois países envolvidos — no Brasil, serviu para
aliviar a pressão sobre Jair
Bolsonaro e piorar a imagem de Lula junto aos evangélicos.
Nenhum líder mundial relevante veio em
auxílio de Lula, assim como nenhum presidente de potência aliada de Israel —
nem Joe
Biden — apoiou a ofensiva virtual e diplomática de Netanyahu.
Ainda assim, vale a pena analisar com lupa a
declaração de Amorim, hoje a pessoa mais influente na política externa do
governo. Ela reflete a visão de mundo segundo a qual o Brasil deve usar sua
posição de liderança no eixo dos países em desenvolvimento para conquistar um
lugar na geopolítica das grandes potências.
Essa foi a tônica da atuação de Amorim quando
chefiou o Itamaraty sob
Lula 1 e 2, que vem expressando em entrevistas e declarações aqui e ali.
No final de janeiro, o “chanceler informal”
de Lula afirmou ao Valor que o Brics (bloco
capitaneado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul,
de que ele é o principal articulador) foi “a transformação mais importante nas
relações internacionais nos últimos tempos”.
Para Amorim, a consolidação do Brics “alertou
os próprios ocidentais para a necessidade de voltar a fortalecer o G20, que é o
órgão principal”. “O polo pode estar se deslocando um pouco”, sugeriu, para
dizer mais adiante que “todos percebem que no Brics está o futuro”, já que
“o PIB do
Brics é maior que o do G7”.
O professor de relações internacionais da FGV
Matias Spektor, autor de estudos fundamentais sobre nossa política externa, tem
uma análise interessante a respeito de como essa filosofia influencia as falas
de Lula sobre a guerra em Gaza ou sobre a invasão da Ucrânia pela
Rússia.
Para Spektor, elas obedecem a um padrão que
pode ser assim traduzido: “Se o Brics é a melhor coisa que aconteceu nos
últimos 20 anos, nada mais natural que usar essas alianças para esticar a corda
e ser duro com o Ocidente, obrigá-lo a fazer concessões aos países em
desenvolvimento. Porque, se o Ocidente não se sente pressionado, mantém o
status quo, esse sistema internacional super-hierárquico onde o Norte manda e o
Sul obedece.
É como se não houvesse outra forma de
“sacudir” as potências ocidentais a não ser criando impasses que afetem não
propriamente as emoções, como disse Amorim, mas a economia e a geopolítica.
Dessa constatação decorrem dois problemas e
uma dúvida.
O primeiro problema é que, em nome de usar as
alianças antiocidentais para sacudir o Ocidente, a “doutrina Amorim” admite dar
aval tácito a Vladimir
Putin, Nicolás
Maduro e outros autocratas para perseguir e matar opositores, censurar
a imprensa e invadir territórios vizinhos, desprezando o valor da democracia e
da própria autonomia dos povos.
O segundo é que, ao usar sua posição no
cenário internacional para defender aliados econômicos e ideológicos, e não
princípios universais, Lula aprofunda uma linha desastrosa já traçada por
Bolsonaro e vai aos poucos dilapidando o grande patrimônio de política externa
do Brasil — ser um mediador equilibrado respeitável para disputas e conflitos.
Por fim, mas não menos importante, a dúvida:
qual o custo real dessa estratégia? O que temos a ganhar? O Brasil tem uma
agenda ampla e ambiciosa a cumprir na economia, na saúde e no meio ambiente
globais, expressa na pauta da reunião de cúpula do G20 que começou ontem no Rio
de Janeiro.
Entre os objetivos estão obter financiamento
para a transição climática em países pobres e intermediários, conseguir doações
para um fundo global contra a fome, incluir a África no G20 e, fora do G20,
aprovar a reforma do Conselho de Segurança da ONU.
Pode até ser que a “doutrina Amorim” ainda
venha a produzir o efeito desejado e arranque concessões das potências globais.
Por ora, tudo o que temos como saldo é um constrangimento diplomático e uma
chuva de memes.
Sei.
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