O Globo
Vivemos uma espécie de democracia do tipo
jabuticaba brasilienses, que só com muita boa vontade parte de nós,
brasileiros, compreende
As instituições brasileiras estão realmente
funcionando, como gostamos de dizer, diante das inúmeras crises institucionais
que enfrentamos nos últimos anos? Aparentemente, sim, mas com distorções que a
qualquer momento cobrarão seu preço. Vivemos uma espécie de democracia do tipo
jabuticaba brasilienses, que só com muita boa vontade parte de nós,
brasileiros, compreende.
Ponto delicadíssimo desse simulacro de
democracia é a participação dos militares na tentativa de golpe. Louvam-se as
Forças Armadas porque não aderiram, exige-se a condenação dos que aderiram, mas
esquecemos de que as omissões de oficiais graduados, não denunciando os que
conspiravam, e permitindo o acampamento de golpistas em frente aos quartéis
pelo país, tudo faz parte do mesmo corporativismo nocivo às instituições
brasileiras.
Todos os ministros que estavam naquela reunião revelada em vídeo oficial e não pediram demissão, militares ou não, são igualmente culpados. Os sinais trocados vêm de muito tempo, não é de agora, e poderão ser trocados novamente, de acordo com os ventos políticos. Só essa possibilidade já demonstra que não vivemos em uma democracia genuína, mas em um simulacro de democracia, que serve aos que estão momentaneamente no poder.
A democracia representativa depende do
equilíbrio entre os Poderes, cada um autônomo e independentes entre si. No
Brasil atual, nada disso acontece. Cada um dos Poderes trata de suas
prioridades, colocando-as acima das questões nacionais. É verdade que o
orçamento não é do Executivo, como disse o presidente da Câmara Arthur Lira.
Mas, no presidencialismo, é o Executivo que dá as diretrizes gerais do governo,
não cabendo ao Legislativo decidir para onde vão as verbas. Precisam adaptar as
necessidades de seus redutos eleitorais ao planejamento central, ou convencer o
Executivo a incluir suas prioridades nos planos do governo.
O Poder Executivo, para se proteger do
assédio econômico do Legislativo faminto por verbas, se aproxima do Supremo
Tribunal Federal (STF) em busca de apoio institucional, o que evidencia uma
distorção do papel do Judiciário.
Assim como em outras ocasiões, o Supremo atua
politicamente, dependendo de onde os ventos sopram. Lula acabou na prisão
acusando a Justiça de estar atuando politicamente para impedi-lo de disputar a
eleição presidencial de 2018 que teoricamente venceria, segundo pesquisas de
opinião. Como se sabe, pesquisa que vale é voto na urna, mesmo que Bolsonaro
não goste disso. Por sinal, ele acabará no mesmo destino de seu malvado
preferido, a cadeia, acusando o governo de perseguição.
Mas, como esse país não é para amadores, tem
a chance de conseguir sair da prisão mais adiante, e se eleger novamente
presidente da República. Isso porque a volubilidade de nosso Supremo pode ter
as consequências mais imprevisíveis, agora já nem tanto. Até o final do
governo, Lula não nomeará nenhum outro ministro, a não ser que um deles queira
sair antes do prazo. O próximo presidente nomeará três ou dois ministros. Se
for do grupo representativo da direita, poderá fazer a maioria do plenário.
O que o ministro Dias Toffoli está fazendo
para se reaproximar de Lula, seu protetor que se sentiu traído pelo protegido
quando este tentou exercer a soberania polêmica que a toga lhe conferiu, é
exemplar de um poder que deveria ser o equilíbrio republicano e acabou se
perdendo em disputas políticas internas e externas.
Durante o julgamento do mensalão, houve uma
discussão no plenário do STF sobre o papel da instituição, que deveria ser o de
defender a Constituição e acabou sendo tragada pelos julgamentos criminais
envolvendo autoridades com foro privilegiado. O hoje presidente do STF ministro
Luís Roberto Barroso propôs, lá pelas tantas, que fosse criado um tribunal
especial para tratar dos crimes de autoridades, ficando o Supremo apenas com o
controle constitucional.
Foi rebatido candidamente, por diversos
ministros, que alegavam que assim o tal Tribunal Especial teria mais poderes
que o próprio Supremo. Por que isso? Porque o poder do Supremo hoje está não na
sua autoridade moral e legal, na sua respeitabilidade, mas no seu poder de
soltar ou prender autoridades.
Com essa prerrogativa, o Supremo sem dúvida
teve um papel fundamental na defesa da democracia brasileira, que teria sido
engolida pelo autoritarismo se encontrasse pela frente uma Corte invertebrada,
disposta a entregar-se ao poder do momento. Um exemplo de como no Brasil nossa
democracia está distorcida é a atuação do ministro Alexandre de Moraes à frente
de inquéritos sobre ataques ao Estado de Direito e fake news.
Nascido de maneira irregular, quando
Alexandre de Moraes foi designado relator sem sorteio pelo então presidente
Dias Toffoli, o inquérito foi se estendendo, e hoje qualquer ação que pareça
vagamente similar ao original tem o ministro Moraes como prevento. Isso lhe dá
um poder excessivo, até mesmo de tomar medidas monocráticas que praticamente
nunca vão à chancela do plenário.
Ao lado de claros excessos, condenados no que
tange à Operação Lava-Jato, mas aceitos no momento atual, há evidentes vitórias
no desvelamento do roteiro do golpe de Estado que o então presidente da
República, de maneira nojenta, orquestrou. Assim como na época da Lava-Jato,
consideravam-se aceitáveis desvios depois revelados por quebra ilegal de sigilo
de procuradores e do juiz Sergio Moro, hoje as evidentes provas de golpe de
Estado também são justificativas para uma aceitação de métodos inortodoxos de
ação jurídica.
Uma demonstração de como os ventos mudam, o
ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo, destacou-se na defesa da Operação
Lava-Jato, classificou de “cleptocracia” o então governo Lula, rompeu com ele
quando tentou adiar o julgamento do mensalão. Hoje, é o maior adversário da
Lava-Jato, e voltou às boas com o presidente Lula. Os mesmos ministros que
negaram habeas corpus para soltar o então ex-presidente mudaram seus votos,
muitos baseados na espionagem ilegal do hacker de Guaratinguetá.
O poder político dá a ministros do Supremo o
direito de destruir de diversas maneiras a Operação Lava-Jato, a tal ponto que
todos os condenados, ladrões confessos, estejam, de uma maneira ou outra,
livres de suas penas, e as empresas corruptoras estejam recebendo de volta o
dinheiro que roubaram dos cofres públicos. A maior prova de que o poder
excessivo provoca ações sem controles, especialmente quando partem da mais alta
Corte de Justiça do país, é a vingança contra a Transparência Internacional,
que criticou as decisões de Toffoli de suspender ou anular multas milionárias
de empresas corruptoras. Não há outra maneira de definir essa decisão, sobre
uma acusação já anulada pelo Ministério Público.
A política corrosiva de Bolsonaro,
sabidamente conhecida de todos os que têm verdadeiros sonhos republicanos,
justifica aparentemente a união do Supremo com o Executivo, que anda
pressionado de maneira ilegítima pelo Congresso conservador, em boa parte bolsonarista,
que impede o governo de governar na direção que lhe parece a melhor, embora a
oposição tenha direito de discordar.
Não é possível, porém, impor às diretrizes
governamentais seus próprios desejos, assim como não pode o Executivo tentar
alterar decisões já tomadas pelo Legislativo. Não é papel do Supremo desempatar
essa disputa política, a não ser que ela fira a Constituição. Como se vê, os
três Poderes estão em conflito entre si. O presidente Lula está tentando
superar esses obstáculos impostos pelo Congresso com uma aproximação dos
governadores, mesmo os de oposição. Esse é o caminho político correto. Os
outros levam a uma corrosão da democracia. As instituições parecem funcionar,
mas o resultado desse simulacro pode ser desastroso.
Pois é.
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