O Globo
Falta ainda compreender em todos os detalhes
a participação de Jair Bolsonaro no complô
A decisão do ministro Alexandre de
Moraes sobre as movimentações golpistas, divulgada na última
quinta-feira, desvelou inúmeros fatos novos. Os detalhes são tantos e tão
chocantes que, às vezes, perdemos o contorno geral da trama.
Olhando com atenção o documento, e combinando
os fatos revelados com outros que já conhecíamos, vemos se formar, grosso modo,
duas linhas de atuação da movimentação golpista: de um lado, tentativas
institucionais e paralegais para reverter o resultado das eleições; de outro,
mobilizações de massa de caráter insurrecional buscando criar instabilidade
social. Em paralelo, uma campanha de pressão sobre o comando das Forças
Armadas, cujo apoio era decisivo, tanto num caso como no outro.
A primeira linha é a que leva ao documento que ficou conhecido como “minuta do golpe”. O termo se popularizou para descrever um insólito decreto de Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para “restabelecer a lisura” do processo eleitoral, suspendendo o sigilo dos ministros do TSE e criando uma comissão de regularidade eleitoral presidida pelo Ministério da Defesa. Essa minuta foi encontrada na casa de Anderson Torres, que foi ministro da Justiça de Jair Bolsonaro. Aparentemente, essa foi apenas uma entre outras minutas (esboços) que buscavam diferentes caminhos paralegais para um golpe de Estado.
Na decisão, Moraes menciona uma minuta, que
parece ter sido a mais importante, “detalhando supostas interferências do Poder
Judiciário no Poder Executivo e [que] ao final decretava a prisão” dos
ministros do Supremo Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes e do presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco, além de convocar novas eleições. Segundo Moraes, quem
promoveu essa minuta foram Filipe Martins, assessor especial de Bolsonaro, e o
advogado Amauri Saad, autor do livro “O artigo 142 da Constituição”, que defende
uma interpretação do artigo em que as Forças Armadas exercem papel de poder
moderador sobre os Poderes da República.
Ainda segundo o relato, em novembro a minuta
foi apresentada a Bolsonaro, que sugeriu alterações, tornando o texto mais
enxuto e limitando a prisão de autoridades a Alexandre de Moraes. A nova
minuta, alterada por Martins e Saad, foi então apresentada por Bolsonaro aos
comandantes do Exército, da Marinha e ao ministro da Defesa no começo de
dezembro.
O general Estevam Theophilo, responsável pelo
Comando de Operações Especiais, aprovou a ideia em reunião com Bolsonaro. O
Almirante Almir Garnier, comandante da Marinha, também. O comandante do
Exército, general Freire Gomes, não aceitou. O comandante da Aeronáutica,
tenente-brigadeiro Baptista Júnior, também foi contra. Ambos foram duramente
atacados por Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e candidato a vice de
Bolsonaro. Uma das evidências de que a ideia foi seriamente discutida é que, na
última quinzena de dezembro, todos os movimentos do ministro Alexandre de
Moraes —que segundo a minuta deveria ser preso —foram monitorados.
Em paralelo, outra articulação foi feita para
criar uma mobilização popular insurrecional que precipitaria a intervenção das
Forças Armadas. A estratégia, como a imprensa noticiou na época, parece
inspirada numa entrevista de Olavo de Carvalho, que havia dito: “Se você tiver
um movimento de desobediência civil generalizado, o pessoal cercar o palácio,
não deixar senador entrar, não deixar ministro entrar, não deixar juiz entrar,
se chegar neste ponto, as Forças Armadas entram”.
Entre o final de outubro e começo de
novembro, houve 804 bloqueios de rodovias no país. No dia 2 de novembro, foram
convocados atos em frente aos quartéis para pressionar as Forças Armadas.
Alguns manifestantes permaneceram em frente a esses quartéis, dando início aos
acampamentos —que chegaram a reunir 43 mil pessoas, segundo estimativa do
Exército.
Pelo relato de Moraes, Mauro Cid se articulou
com o major Rafael Martins para definir o Congresso Nacional e o Supremo como
alvos das manifestações de 15 de novembro (no final, a manifestação aconteceu
apenas em frente ao Q.G. do Exército). Na véspera da manifestação, os dois
combinaram o valor de R$ 100 mil para levar manifestantes ao protesto,
custeando hospedagem, alimentação e materiais. Em áudio ao general Freire
Gomes, Cid diz que as manifestações em Brasília foram financiadas por
empresários do agronegócio. No dia 15 de novembro, 100 mil pessoas se reuniram
em frente ao Q.G. do Exército em Brasília.
No dia 28 de novembro, o coronel Corrêa Neto
convocou uma reunião em Brasília apenas com oficiais das Forças Especiais
(conhecidos como Kids Pretos). reportagens da imprensa mostraram depois que
esses oficiais, treinados em técnicas de guerrilha, seriam pivôs do
quebra-quebra que aconteceu no dia 12 de dezembro durante protesto contra a
prisão do líder bolsonarista Cacique Serere. Nesse dia, a sede da Polícia
Federal foi invadida, lojas foram saqueadas e oito veículos foram incendiados.
Um mês depois, no 8 de Janeiro, os Kids Pretos fizeram os movimentos mais
ousados e decisivos na invasão das sedes dos Poderes.
O relato de Moraes não oferece ainda todos os
elementos para entendermos a trama golpista. Não sabemos ainda quem deu a
ordem, nem quem organizou os bloqueios de rodovias e os atos de sabotagem em
refinarias e linhas de transmissão. Mas, mais importante do que tudo isso,
falta ainda compreender em todos os detalhes a participação de Jair Bolsonaro
nesse complô.
Excelente análise! Parabéns ao colunista, e ao blog por divulgar seu trabalho!
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