O Globo
Escolas de samba do Rio fazem uma busca
radical pelas raízes de um país que procura a si mesmo e não encontra
O Brasil é um país que procura a si mesmo e
não encontra. Ponciá Vicêncio, personagem de Conceição Evaristo, é dada a ter
uns vazios de si mesma. O Brasil é assim. Mas não desiste da busca, como
Ponciá. Este carnaval no
Rio tem isso. Dois dos enredos baseados em livros são radicais buscas de
raízes. A Portela trará
na segunda-feira a obra de Ana Maria Gonçalves, “Um defeito de cor”, uma viagem
atrás da fonte negra e africana da nossa identidade. A Grande Rio traz, neste
domingo, o livro de Alberto Mussa, “Meu destino é ser onça”, um relato do
elemento tupinambá da porção indígena da brasilidade. O Salgueiro
virá cantando o povo Yanomami e um verso que diz “tenho o
sangue que semeia a nação original”.
Não importa, aqui, a disputa dos quesitos, o Brasil ganha sempre nesses mergulhos que o carnaval permite — em algumas escolas, em certos enredos — pelos muitos passados encobertos do país. Como cantou a Mangueira, em 2019, “Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta”. Somos profundamente quem somos e nos desentendemos de nós.
Mussa sustenta no livro dele que os Tupinambá
não estão extintos. Apenas a sua cultura. Pela intensa miscigenação, eles e
outros indígenas vivem em cada brasileiro. “Não sei o que é ainda necessário
fazer para que as pessoas compreendam isso — que não estamos aqui faz apenas
cinco séculos, mas há uns 15 mil anos. Há 15 mil anos somos brasileiros; e não
sabemos nada do Brasil”, escreve Mussa.
Não é apenas literatura. A nova arqueologia
amazônica traz evidências de que os humanos estão no Brasil há muito tempo.
Quem tiver interesse pode correr aos livros dos arqueólogos, como “Sob os
tempos do Equinócio”, do professor da USP Eduardo Góes Neves. Mussa cita
pesquisas genéticas de Sérgio Danilo Pena mostrando o quanto somos indígenas. E
somos intensamente negros, como sabemos.
O livro do Mussa é um relato, com base em
textos originais, dos mitos de origem do mundo dos Tupinambá, os primeiros
povos da baía de Guanabara. A história os vê como derrotados, porque lutaram
contra os portugueses, aliando-se aos franceses. Os seus adversários indígenas,
de diversas etnias, tupiniquins, temiminó, foram aclamados. Tanto que Arariboia
tem estátua, como “herói da resistência aos franceses”, mas Cunhambebe é
considerado traidor da pátria, por ter resistido aos portugueses. Os Tupinambá,
ou Tamoio, foram derrotados na luta que ocorreu na atual Praia do Flamengo, a
batalha de Uruçumirim. “Só não é verdade que essa guerra foi perdida para os
colonizadores”, alerta Mussa. Eles eram canibais e isso tem sido destacado, mas
sua cultura inspirou a literatura e o cinema. A leitura do “Meu destino é ser
onça” permite entender expressões da letra do samba como “a terceira
humanidade” ou “enquanto a onça não comer a lua”.
Também quem chega à cena final do livro de
Ana Maria Gonçalves entende o sentido profundo do verso “te encontro ao ver o
mar”. É o fim da busca da mãe, Kehinde, ou Luísa, por seu filho, Luis Gama. Uma
procura que dura décadas, cruza continentes e atravessa o mar. Esse amor
desassossegado de mãe, que não sabe o destino do filho, recebe o conforto nos
versos do samba enredo da Portela:
“Saravá, Kehinde, teu nome vive, teu povo é livre, teu filho venceu, mulher”. E
a resposta a uma carta da vida inteira.
Sagas negras e indígenas povoam o chão da
Sapucaí e a nossa história. Passada e presente. No samba “Hutukara”, o
Salgueiro fala da Amazônia atual, com o ataque do garimpo ilegal aos Yanomami,
incentivado pelo governo passado. “Você diz lembrar do povo Yanomami em 19 de
abril, mas nem sabe meu nome e sorriu da minha fome”. Com crítica ao uso dos
indígenas apenas para “postar no seu perfil” o samba lembra que “falar de amor
enquanto a mata chora, é luta sem flecha, da boca pra fora”. Lembra que a
batalha agora é para sobreviver porque “somos parte de quem parte, feito Bruno
e Dom”. E termina com o verso “a chance que nos resta é um Brasil Cocar”.
É só o desfile do Grupo
Especial das Escolas do Rio, mas é também, como canta a Portela, um
ato “para fazer da identidade o nosso livro aberto”. Esta é minha coluna de
volta das férias. Há muitos assuntos econômicos e políticos para analisar, mas
prefiro hoje olhar para outras faltas nossas.
“Não me leve a mal, hoje é carnaval”.
E voltou arrasando,parabéns pelo artigo!
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