O Globo
Ex-presidente precisava de um apocalipse como
prelúdio. Como o fim do mundo não veio, Lula está no Planalto e ele ficou sem
passaporte
Todo golpe vitorioso pinta-se heroico (São
Petersburgo, 1917, ou Brasil, 1964) e todo golpe fracassado é mostrado como
ridículo (Moscou, 1991, ou Brasil, 2022). Nenhum dos quatro teve tanto heroísmo
nem tantas trapalhadas como as que foram pintadas pela vitória e pelo fracasso.
O ex-capitão reformado nunca viu um golpe.
Segundo o general Ernesto Geisel, foi “um mau militar”. (Geisel viu seis e
ganhou com as brancas em cinco.)
O golpe de Bolsonaro era público. Ele
precisava de um apocalipse como prelúdio. Como o fim do mundo não veio, Lula
está no Planalto e ele ficou sem passaporte.
Pelo que se sabe até agora, Bolsonaro refinou
o cenário em julho, numa reunião com três generais palacianos (Braga Netto,
Augusto Heleno e Mário Fernandes), mais os ministros da Defesa, Paulo Sérgio
Nogueira e Anderson Torres, da Justiça. Todos acompanharam-no na condenação das
urnas eletrônicas. O general Paulo Sérgio, que tinha oficiais na Comissão de
Transparência do Tribunal Superior Eleitoral, foi preciso:
“Vou falar aqui muito claro. Senhores! A
comissão é para inglês ver.”
Podia ter dito isso ao público, arrostando a
contradita. Prático e clarividente, só o general Augusto Heleno:
“Não vai ter revisão do VAR. Então, o que tiver que ser feito tem que ser feito antes das eleições. (...) Se tiver que virar a mesa é antes das eleições.”
O golpe de 15 de novembro de 1889 foi armado
dias antes, em segredo. O de 1937, combinado primeiro com os dois chefes
militares da época. Em 1945, os mesmos generais decidiram derrubar Getulio
Vargas de manhã e ele estava deposto à noite. Diferente dos anteriores, o de
1964 teve um espoleta: o general Mourão Filho, que comandava as mesas de uma
Região Militar em Juiz de Fora (MG). (Na manhã de 31 de março o general
Humberto Castello Branco tentou pará-lo e no meio da tarde o general Costa e
Silva deixou o Ministério da Guerra temendo ser preso.)
Bolsonaro não teve seu Mourão Filho. Os
generais e coronéis que tramavam um golpe não tinham tropa para rebelar. O
general Estevam Theophilo disse que queria uma ordem escrita.
As 135 páginas da decisão do ministro
Alexandre de Moraes expõem um planejamento chinfrim (porque fracassou). Faltam
nele generais e coronéis da ativa com comando de tropa. Faltam, porque ali
estão os oficiais silenciosos. Em 2022, por exemplo, circulava uma história
segundo a qual Bolsonaro havia convidado o general Tomás Paiva, comandante da
tropa do Sudeste, para uma de suas motociatas. Paiva recusou-se e o ex-capitão
disse:
“Muita gente sua virá”.
“Se vier fardado vai preso”, teria respondido
o general, que nunca disse uma palavra com sentido político.
Como o general silencioso não fala, o espaço
é ocupado por militares da reserva, que dão ordens aos seus taxistas, ou por
generais palacianos, que comandam os motoristas de carros oficiais.
O general Augusto Heleno disse uma verdade,
só se vira a mesa antes da eleição. Noves fora 1930, depois, só se teria
tentado em 1955, quando Juscelino Kubitschek já estava eleito. A trama passava
pela demissão do ministro Henrique Lott (um general silencioso). Lott foi
exonerado à tarde e, na madrugada, o presidente Carlos Luz estava deposto. Ele
substituía provisoriamente o titular, Café Filho. Por ricochete, Café foi
impedido de voltar ao Palácio do Catete. Em questão de horas, Lott derrubou
dois presidentes.
Compostura
O general Walter Braga Netto, candidato a
vice-presidente na chapa de Bolsonaro, veio para a ribalta em 2018, quando foi
colocado como interventor militar na segurança do Rio. Foi pedestre, porém
discreto. Como chefe da Casa Civil e ministro da Defesa, repetiu o desempenho.
É verdade que em junho de 2022 disse a empresários que, sem a auditoria das
urnas eletrônicas, “não tem eleição”. Como é costume, desmentiu a notícia, pois
sua fala teria sido tirada de contexto e mal interpretada. Jogo jogado, esses
malditos jornalistas distorcem tudo.
As revelações trazidas pela Polícia Federal
mostraram outro Braga Netto, nas suas palavras textuais, sem direito ao recurso
da patranha do contexto.
Em dezembro de 2022, referindo-se ao
comandante do Exército, general Freire Gomes, escreveu:
“Omissão e indecisão não cabem a um
combatente. (...) Cagão.”
Poderia ter sido um momento de exasperação
mas, dias depois, deu-se à futrica:
“O Tomás foi hoje no VB, ontem. E aí
acredite... Ele deu uma mijada no VB e na Cida.”
Tomás era o general Tomás Paiva, que
comandava a tropa do Sudeste e hoje comanda o Exército. VB era o general
Eduardo Villas Bôas e Cida, a mulher dele.
Braga Netto foi adiante:
“Nunca valeu nada !! A ambição derrota o
caráter dos fracos. Aliás... revela. Ele ainda meteu o pau no Paulo Sérgio,
disse que ele tem que ficar quieto! A Cida ficou louca. Se retirou da sala,
para não botar o artista para fora!”
Na futrica, sobrou para Villas Bôas e para o
ex-ministro da Defesa general Fernando de Azevedo e Silva, demitido por
Bolsonaro, que estava quieto no seu canto:
“Na verdade, VB tinha paixões discutíveis..
Fernando... Tomás.”
O tuíte esquecido de VB
O general Eduardo Villas Bôas celebrizou-se
com seu tuíte de abril de 2018, quando, como comandante do Exército, emparedou
o Supremo Tribunal Federal, garantiu a permanência de Lula na cadeia e plantou
a semente de uma anarquia militar.
No dia 15 de novembro de 2022 foi publicado
em seu nome outro tuíte que ficou esquecido. Duas semanas depois do segundo
turno, VB dizia assim:
“A população segue aglomerada junto às portas
dos quartéis pedindo socorro às Forças Armadas. Com incrível persistência, mas
com ânimo absolutamente pacífico, pessoas de todas as idades, identificadas com
o verde e o amarelo que orgulhosamente ostentam, protestam contra os atentados
à democracia, à independência dos Poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas
sobre o processo eleitoral.”
A essa época o general estava fora do
Exército e do governo. Padecendo há anos de uma moléstia degenerativa, não
caminhava e respirava com a ajuda de aparelhos. Seu tuíte mostrava algum
desapontamento com a imprensa:
“O inusitado diante dos movimentos foi
produzido pela indiferença da grande imprensa. Talvez nossos jornalistas
acreditem que ignorando a movimentação de milhões de pessoas elas
desaparecerão. Não se apercebem eles que ao tentar isolar as manifestações podem
estar criando mais um fator de insatisfação. A mídia totalmente controlada nos
países da cortina de ferro não impediu a queda do Muro de Berlim. A História
ensina que pessoas que lutam pela liberdade jamais serão vencidas.”
No dia 15 de dezembro os bloqueios em
estradas eram 32.
Uma vergonha!
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