domingo, 18 de fevereiro de 2024

Míriam Leitão - O risco do golpe para os militares

O Globo

Não haverá garantia de estabilidade democrática se as Forças Armadas não fizerem a depuração correta, separando o joio do trigo

A ordem do general Braga Netto para atacar os colegas confirma o quanto a politização das Forças Armadas é danosa para os próprios militares. Como coordenador de milicianos digitais, o ex-ministro da Defesa dispara ordens: “viraliza”, “senta o pau no Batista Júnior”, “elogia o Garnier”. E critica o “gosto discutível de VB”, como é chamado o general Villas Boas, por “Fernando e Tomás”. Falava de Fernando Azevedo, antigo ministro da Defesa, e do atual comandante do Exército, Tomás Paiva. Azevedo foi barreira nos primeiros movimentos do projeto golpista, Tomás se interpôs na reta final. A cena completa revelada na Operação Tempus Veritatis é de que o país esteve muito perto de uma nova ditadura, mas também de que a conspiração fraturava as próprias Forças Armadas e subvertia as bases da disciplina e hierarquia pelas quais tanto zelam os militares.

Não haverá garantia de estabilidade democrática se as Forças Armadas não fizerem, desta vez, a depuração correta, separando o joio do trigo. O país precisa disso, mas os militares também. Agora não é possível adiar a punição com o argumento de que é revanchismo. É questão de sobrevivência deles mesmos. Houve no golpismo de Bolsonaro manifesto de oficiais da ativa pressionando comandantes, militar passando por cima da chefia, militares da ativa com linha direta com um elemento que havia sido expulso do Exército (o ex-capitão Ailton Barros), houve comandante se negando a passar o comando. Tudo isso é perigoso vendo unicamente da ótica dos quartéis.

Pode-se argumentar que Braga Netto é da reserva. Muitos outros atores do golpe já estão na reserva. Mas havia vários personagens da ativa e ainda estão. Na semana passada, o general Tomás Paiva, comandante do Exército, exonerou dos seus cargos os coronéis Hélio Ferreira Lima e Guilherme Marques Almeida. Hélio comandava as Forças Especiais de Manaus e está na lista do processo no Supremo entre os que devem ser “inabilitados para a função pública”. Exonerar não basta.

Há um trecho da denúncia feita pela Polícia Federal e acolhida na decisão do ministro Alexandre de Moraes que diz assim: “No sentido do que reporta a autoridade policial, surge outra grave linha de atuação do grupo investigado contra as Forças Armadas, direcionada a desacreditar os militares que, defendendo a Constituição e a legalidade, estavam resistindo às investidas golpistas”.

O coronel Bernardo Romão Correia Netto, na época assistente do Comandante Militar do Sul, ajudou a organizar a reunião de oficiais das Forças Especiais, todos da ativa, assistentes de generais “supostamente aliados na execução do golpe”. Desta reunião é que saiu o manifesto pressionando o comandante do Exército, general Freire Gomes. Manifestos de militares da reserva sempre ocorreram. Mas, neste caso, o documento dizia no título que era muito mais grave: “Carta ao Comandante do Exército de oficiais superiores da ativa do Exército Brasileiro”. Isso é quebra de disciplina, e atentado coletivo ao princípio de não manifestação política de militares da ativa. O coronel Correia Netto está preso. E os outros participantes dessa reunião?

O major Rafael Martins, o Joe, pediu orientação para Mauro Cid, então ajudante de ordens da presidência, em relação aos atos golpistas do dia 15 de novembro de 2022. “Aê, o pessoal tá querendo a orientação correta da manifestação. A pedida é para ir para o CN e o STF? As FFAA vão garantir a permanência lá?”. Mauro Cid responde às duas perguntas “CN e STF”, “vão”. O major, em seguida, pede dinheiro. Cid pergunta: “Só faz uma estimativa com hotel, alimentação, material, 100 mil?”. O major responde que é em torno disso, e a resposta do Cid, “vou te mandar”. Há, nos autos, uma sucessão de mensagens revelando que, sim, militares da ativa quebraram o regulamento militar.

Essa desordem dentro das Forças Armadas foi cultivada por Jair Bolsonaro e o momento decisivo desse projeto foi em 29 de março de 2021, quando ele demitiu Fernando Azevedo, então ministro da Defesa, e nomeou Braga Netto. Os três comandantes militares também foram dispensados. O general Edson Pujol foi substituído por Paulo Sérgio Nogueira, o almirante Ilques Barbosa, por Almir Garnier, e o brigadeiro Moretti Bermudez foi trocado por Baptista Júnior. O motivo da crise foi anunciado na época: Bolsonaro queria mais apoio militar. Foi o que ele teve. O resultado foi a fratura nas Forças Armadas e a ameaça sobre o país.


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