domingo, 25 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Combate ao crime exige retomar controle de prisões

O Globo

No ano passado, quase um preso fugiu por dia, enquanto verbas destinadas à segurança sofreram cortes sucessivos

A fuga de dois detentos do presídio federal de segurança máxima de Mossoró, no Rio Grande do Norte, foi inédita, dado o retrospecto inexpugnável dessas cadeias. Elas contrastam com as superlotadas prisões estaduais, que abrigam a massa de mais de 650 mil presos do Brasil. Levantamento do GLOBO junto a 18 estados constatou que, no ano passado, 333 presos fugiram da cadeia, quase um por dia.

As penitenciárias brasileiras estão longe do nível de segurança necessário para os condenados cumprirem as penas estabelecidas pela Justiça. A maioria das fugas ocorre na surdina, geralmente com a colaboração de agentes penitenciários e a ajuda das facções criminosas que controlam as prisões. “É ilusório pensar que a fuga acontece só por vontade própria, isso só [existe] nos filmes de Hollywood. No Brasil demanda muito dinheiro”, diz Ludmila Ribeiro, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

É o que mostra a evasão de 14 detidos no presídio de Trindade, em Goiás, em outubro passado. Nas investigações, foram presos um agente penal e um vigilante temporário. Cada um dos fugitivos foi acusado de ter pagado R$ 10 mil aos dois agentes. Em troca, eles deixaram a cela aberta, para os detentos alcançarem um buraco no telhado do corredor. Os presos pagaram o suborno por Pix durante um banho de sol.

As organizações criminosas se fortalecem com as más condições das penitenciárias. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 48% estão superlotadas e 33% em condições avaliadas como “péssimas” ou “ruins”. Um sintoma de que o problema não vem merecendo o tratamento necessário é a queda nos recursos do Fundo Penitenciário Nacional, que destina verbas à União e aos estados para políticas na área. Os valores caíram de R$ 1,2 bilhão para R$ 605 milhões entre 2018 e 2023. Para este ano, a previsão é modesta: R$ 361 milhões. Em 2023, 64% dos recursos foram destinados à compra de veículos, equipamentos de proteção e armamento. O resto foi gasto em despesas correntes, como luz, gás, salários, passagens e diárias.

O fundo é importante não só para construir novas unidades, mas também para garantir a segurança das atuais. No caso de Mossoró, havia problemas de manutenção dos equipamentos: 124 câmeras de vigilância estavam fora de operação. As imagens disponíveis são de péssima qualidade.

Qualquer debate sobre segurança pública hoje precisa passar pelos presídios, que não cumprem a função de isolar os presos do convívio. De dentro das celas, eles continuam tocando suas atividades criminosas, ordenando execuções de rivais, ataques ao patrimônio público ou fugas. Unidades prisionais superlotadas funcionam como escolas do crime, formando mão de obra especializada para o tráfico e a milícia.

Com protocolos rígidos e vagas de sobra, as cinco penitenciárias federais de segurança máxima figuram como ilhas de exceção. Mesmo assim, não são perfeitas, como mostrou a fuga em Mossoró. Nas unidades estaduais, a situação é preocupante. De 2000 até junho do ano passado, o déficit de vagas quase dobrou (de 97 mil para 166 mil). Se o Brasil quiser combater as facções criminosas, terá de retomar o controle dos presídios. Isso implica investimentos e gestão. Do contrário, as cadeias continuarão a ser cenário de fugas, além de fonte inesgotável de mão de obra para a violência nas ruas.

Processo da UE contra TikTok serve de exemplo de regulação no meio digital

O Globo

Autoridades de Bruxelas investigam se plataforma chinesa protege as crianças de modo satisfatório

União Europeia (UE) se firma como um mercado pioneiro nas iniciativas para disciplinar as plataformas digitais. Na segunda-feira, os reguladores da UE abriram investigação sobre o TikTok. O processo se baseia na nova Lei de Serviços Digitais (DSA, em inglês) e tem como objetivo avaliar os mecanismos usados para proteger as crianças. Serão avaliados os sistemas de filtro da plataforma de vídeos, propriedade da chinesa ByteDance, destinados a barrar conteúdos indesejáveis como violência, pornografia ou publicidades nocivas.

Na investigação sobre o TikTok, os reguladores pretendem avaliar também o uso de algoritmos para sugerir vídeos. Pela experiência acumulada, é sabido que esse caminho costuma levar a conteúdos extremistas, forma eficaz de manter a clientela sempre “engajada”. O TikTok também é acusado de induzir usuários a acessar e a produzir vídeos que invadem a privacidade.

A plataforma de vídeo chinesa estava havia algum tempo sob vigilância dos reguladores europeus. Em abril do ano passado, o TikTok foi multado em € 345 milhões na Irlanda, por contrariar legislação da UE na gestão das informações sobre as crianças que acessam a plataforma. O mesmo aconteceu no Reino Unido. Se a plataforma for condenada com base no DSA, ela poderá receber uma multa de até 6% do faturamento global.

Os reguladores europeus não se concentram apenas no TikTok. Em dezembro, a plataforma X, ex-Twitter, controlada pelo bilionário Elon Musk, entrou na mira dos investigadores de Bruxelas. Chamaram a atenção dos órgãos de regulação falhas no bloqueio de conteúdos ilegais e a aplicação de medidas inadequadas contra a desinformação.

Também a Apple é alvo das autoridades europeias, em razão de suas políticas no mercado de streaming. A Comissão Europeia apura se ela tem bloqueado aplicativos que informam aos usuários meios mais baratos de obtê-los, fora da Apple Store. Se comprovado, o fato configuraria abuso de poder econômico. As autoridades de Bruxelas podem aplicar, segundo o jornal britânico Financial Times, uma multa de € 500 milhões.

O TikTok enfrenta a mesma questão de Google (dono do YouTube) e Meta (controladora de Facebook, Instagram, WhatsApp). Há muito tempo atraem uma audiência de bilhões de pessoas no planeta sem políticas satisfatórias de moderação de conteúdo, resguardando-se na falácia de que são “apenas” empresas de tecnologia — mesmo que tenham se tornado ferramenta de lazer e trabalho. Plataformas como o TikTok precisarão a cada dia levar mais a sério os organismos regulatórios, dentro e fora da UE.

Censo mostra atraso do país no saneamento

Folha de S. Paulo

Avanço lento e desigual mantém 49 milhões de cidadãos sem acesso a esgoto; modelo estatista, é evidente, está exaurido

De menos ruim, os dados recém-divulgados do Censo 2022 sobre saneamento básico mostram avanço ao longo da última década. Trata-se, entretanto, de uma melhora lenta e desigual, que mantém o Brasil em situação vexaminosa para um país de renda média.

No ano retrasado, 75,7% dos brasileiros viviam em domicílios com acesso a coleta de esgoto tida como adequada, ante 64,5% contados em 2010. Dito de outro modo, o quarto restante dos cidadãos —49 milhões de pessoas, mais que a população da Argentina— recorre a fossas rudimentares, valas, buracos e águas de rios, lagos e mar.

Dados mais completos e detalhados mostram um cenário ainda mais aviltante. No Censo, o IBGE só consegue investigar a coleta, deixando de lado o tratamento do esgoto, e considera aceitáveis as condições de domicílios com fossa séptica ou fossa-filtro, que perfazem 13,2% do total nacional.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), somente 52,2% do esgoto do país é tratado, o que atende não mais de 56% da população.

Num comparativo internacional sobre o tema feito há um ano por agências da ONU, o Brasil ocupava um deplorável 76º lugar entre 129 países, atrás de vizinhos mais pobres como Paraguai e Bolívia.

Mesmo o progresso apontado pelo Censo 2022 revela disparidades regionais gritantes. Enquanto a taxa de coleta adequada subiu de 85,7% para 90,7% no Sudeste entre 2010 e 2022, no Nordeste a variação no período foi de 43,2% a 58,1%, e no Norte, de 31,1% a 46,4%.

Os números comprovam, como se isso ainda fosse necessário, que está exaurido o modelo de saneamento básico baseado em empresas estatais —que conta com defensores obstinados no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na esquerda e nos sindicatos.

O panorama, felizmente, dá sinais de mudança forçada pela realidade. O novo marco legal do setor, aprovado em 2020, abriu caminho para maior participação do setor privado mirando a meta de universalização até 2033. No ano passado, o Congresso barrou a tentativa de Lula de promover um retrocesso na legislação.

A indigência nacional em saneamento é desastrosa para o ambiente e a saúde pública —a explosão anunciada da dengue é apenas um exemplo mais recente. Sua superação depende de investimentos vultosos e gestão eficiente, em falta no poder público deficitário.

Privatizações, como se fez no Rio e se pretende fazer em São Paulo, mostram um bem-vindo pragmatismo. Há muito a fazer para evitar nova constatação de atraso civilizatório no Censo de 2030.

Meio cheio, meio vazio

Folha de S. Paulo

Censo Escolar 2023 mostra alguns progressos e gargalos crônicos, como a evasão

Segundo o Censo Escolar 2023, divulgado na quinta (22), mais de 68 milhões de brasileiros acima de 18 anos não concluíram a educação básica e não estudam; na faixa de 18 a 24 anos, são mais de 4 milhões.

Esses números apontam para gargalos no ensino médio, no qual se verificam os principais problemas que levam à evasão escolar.

A taxa de reprovação é mais alta na primeira (4,1%) e na terceira série (5,6%) dessa etapa, de acordo com dados entre 2020 e 2021 levantados pela pesquisa. Não à toa, as taxas de abandono dos estudos chegam a 7% e 7,1% no primeiro e no segundo ano, respectivamente, e 5,9% na média dos três anos.

É inescapável, entende este jornal, dar continuidade à reforma dessa etapa da vida escolar, que tem como objetivos tornar o currículo mais atraente, com a oferta de percursos formativos focados em áreas de interesse dos alunos, e estimular a educação profissional.

Nesta última, as matrículas foram de 1,9 milhão em 2019 para 2,4 milhões em 2023 —1,3 milhão na rede pública e 1,07 milhão na particular.

Mas maior parcela dos alunos (44,7%) está na modalidade subsequente do ensino técnico, quando foi concluído o ensino médio. Seria mais adequado elevar a participação nos modelos integrado (32,4%) e concomitante (13,7%).

O ensino de tempo integral, que melhora o aprendizado e ajuda a diminuir a evasão, também evoluiu, com 21% das matrículas na educação básica em 2023 —alta de 5,1 pontos percentuais em relação a 2021. Mas o país ainda não alcançou a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que prevê 25% de matrículas neste ano.

Outro incremento foi o número de alunos em creches, que subiu de 3,4 milhões em 2021 para 4,1 milhões em 2023. Para cumprir o PNE, que estipula 50% de crianças entre 0 e 3 anos, o número precisa chegar a cerca de 5 milhões.

Apesar de melhoras, o Brasil ainda está muito aquém dos parâmetros de uma educação de qualidade.
Espera-se que os achados do censo orientem uma alocação eficiente de recursos públicos para resolver problemas desse setor fundamental para a redução da exorbitante desigualdade social do país.

Bolsonaro quer sequestrar a oposição

O Estado de S. Paulo

Com o ato de hoje na Paulista, Bolsonaro espera demonstrar que, a despeito do futuro nada auspicioso que se lhe apresenta, é ele o único capaz de liderar a oposição a Lula da Silva

Jair Bolsonaro subirá num carro de som na Avenida Paulista hoje à tarde como um homem acuado. O ex-presidente vive o momento mais crítico de sua longa e improdutiva trajetória política – quando emergem, dia após dia, os detalhes da conspiração bolsonarista para tentar um golpe de Estado, tudo tramado nas salas de reunião da Presidência da República. No limite, isso poderá custar não só a proscrição definitiva de Bolsonaro das disputas eleitorais, como também anos de cadeia para ele e para seus sócios na empreitada golpista.

A manifestação, portanto, desvelase como uma tentativa de resposta política de Bolsonaro diante desse quadro adverso. Seu objetivo é muito claro: demonstrar que, a despeito do futuro nada auspicioso que se lhe apresenta, é ele o único político capaz de liderar a oposição ao governo do presidente Lula da Silva e que abandoná-lo não é uma opção.

Mas dessa oposição – golpista, que insulta as instituições democráticas, ataca a imprensa e prega a violência – o País não precisa. Pode ser que sirva aos propósitos do presidente Lula da Silva, que vestiu a fantasia de herói da democracia contra a ameaça bolsonarista, mas não serve aos propósitos do Brasil, terrivelmente necessitado de uma oposição que ajude a construir soluções em vez de sabotar o diálogo. Definitivamente, não é essa a oposição civilizada e democrática que estará no carro de som para desagravar Bolsonaro – ainda que, por estratégia de seus advogados, não se gritem palavras de ordem contra o Supremo Tribunal Federal nem a favor da ruptura democrática, como de hábito.

Quando convocou seus apoiadores para a manifestação de hoje dizendo que, “mais do que discursos”, o importante é “uma fotografia de todos vocês”, para “mostrar para o Brasil e para o mundo a nossa união”, Bolsonaro nem sequer tentou disfarçar sua estratégia. Essa “união” entre ele e o eleitorado que se opõe visceralmente a Lula e ao PT tem o evidente propósito de constranger os aliados de Bolsonaro que hesitam em seguir a seu lado no momento em que seu envolvimento numa trama explicitamente golpista fica cada vez mais evidente.

À luz das leis e da Constituição, pouco importa se haverá uma multidão ou uns gatos-pingados hoje na Avenida Paulista. É bastante improvável que a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal façam ou deixem de fazer o que se lhes impõe o ordenamento jurídico do País a depender do número de pessoas enquadradas na fotografia por que Bolsonaro tanto anseia.

Se as intenções de Bolsonaro estão claríssimas, resta ver como se comportarão seus aliados políticos. São muitas as suspeitas de que houve, de fato, a intenção de dar um golpe de Estado em 2022 para impedir a posse de Lula e manter Bolsonaro no poder, em desabrida afronta à soberania da vontade popular manifestada nas urnas. É ao lado do líder dessa conspirata que as lideranças de uma dita direita moderada desejam estar?

Nesse sentido, é estarrecedor que o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, não só tenha cedido o Palácio dos Bandeirantes como estalagem para Bolsonaro, como ainda tenha aberto as portas da sede do governo paulista, nada menos, para servir de escritório para “reuniões preparatórias” para a manifestação de hoje. O cálculo eleitoral, a lealdade ou a gratidão, seja qual for o nome que se dê às razões de Tarcísio para emprestar a pujança política de São Paulo a um golpista de marca maior, já começam a flertar com a imprudência. Afinal, a rigor, ninguém sabe que rumo a manifestação poderá tomar. Bolsonaristas radicais já deram mostras do que são capazes quando os interesses do “mito” estão sob risco.

Por aí se vê a força de Bolsonaro, que, a despeito de suas aflições judiciais, ainda é capaz de sequestrar a direita tida como moderada e submetê-la a seus propósitos truculentos e antidemocráticos. Não se sabe quanto tempo essa força durará, mas, até que expire, continuará a distorcer as causas liberais e a acarretar imensos prejuízos ao bom debate.

Limitação das ‘saidinhas’ não é panaceia

O Estado de S. Paulo

Restrição draconiana à concessão do benefício para todos os presos, indistintamente, significa a capitulação do Estado na missão de ressocializar os cidadãos sob sua custódia

O Senado aprovou o Projeto de Lei (PL) 2.253/2022, que restringe duramente a concessão das saídas temporárias aos presos de bom comportamento em regime semiaberto. Pode-se dizer que os senadores promoveram um certo avanço humanitário. Afinal, o texto original aprovado pela Câmara previa o fim total das chamadas “saidinhas”, não sua limitação. De qualquer forma, o populismo prevaleceu no debate sobre um projeto que, a bem da sociedade, deveria ter sido discutido à luz das evidências, com mais técnica e menos paixão.

Dito isso, é incontornável reconhecer que o PL 2.253 mexe com as emoções de uma sociedade farta da leniência do Estado para lidar com o problema da violência. O País parece estar de joelhos diante de organizações criminosas cada vez mais perversas. É ultrajante ver agentes públicos se associarem a criminosos numa torpe joint venture delitiva que faz com que milhões de cidadãos se sintam largados à própria sorte. Aí estão as facções do tráfico e as milícias, que ocupam largas porções do território nacional e ali escrevem com sangue as suas próprias constituições.

Esse sentimento foi muito bem captado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES), cujas credenciais democráticas e humanistas são insuspeitas. Ao votar a favor da restrição das “saidinhas”, Contarato reconheceu que, “diante dessas circunstâncias, não é razoável explicar (a concessão de benefícios penais) para quem teve um filho morto por homicídio doloso”. Pedindo perdão aos colegas de bancada, Contarato sustentou seu voto por entender que o benefício “não passa a sensação, mas a certeza da impunidade” para a população.

Há fundamento nesse desabafo do senador petista. O controle de permissões para as “saidinhas” é falho. Não há dúvida de que têm ido para as ruas em feriados e datas comemorativas alguns presos que jamais deveriam ter o benefício. Entretanto, são casos isolados, que não deveriam servir de base para a continuidade ou a revogação de uma política pública; deveriam, antes, servir ao seu aprimoramento.

É quase certo que o PL 2.253 será aprovado novamente pela Câmara antes de seguir para análise do presidente Lula da Silva. Resta ver se os deputados vão preservar no texto a emenda do senador Sergio Moro (União-PR), que manteve a permissão para as “saidinhas” para presos matriculados em cursos profissionalizantes, no ensino médio ou superior. Mas, independentemente do resultado final, é fundamental refletir se a medida, de fato, contribuirá para o aumento da segurança da sociedade. O castigo estatal tem uma justa dimensão restaurativa, mas também deve ensejar medidas capazes de evitar que os condenados voltem a delinquir quando postos em liberdade.

As “saidinhas”, se bem controladas, têm essa dimensão preventiva. Elas permitem que os presos de bom comportamento – que, diga-se, já desfrutam de certo grau de liberdade por cumprirem pena em regime semiaberto – tenham contato com suas famílias e, assim, sejam acolhidos por mais tempo em um ambiente social diametralmente oposto, por óbvio, à brutalidade dos presídios. Retirar de todos os presos, indistintamente, esse respiro de humanidade tende a aumentar a vulnerabilidade dos que cometeram crimes menos graves ao assédio cada vez mais violento das organizações criminosas que exercem poder de vida e morte intramuros.

O problema da violência deve ser enfrentado com um arcabouço legal mais inteligente. No caso em questão, isso significa aprimorar os controles sobre as “saidinhas”, não acabar com o benefício.

Medidas de ressocialização não são favores prestados aos criminosos. É no melhor interesse da sociedade que elas existem. Não há pena de morte nem tampouco de prisão perpétua no Brasil, o que significa que quem cometeu um crime e foi preso um dia haverá de voltar ao convívio social. Que preso será esse e com que espírito voltará a circular pelas ruas, depende de quanto o Estado está disposto a lhe estender a mão para reconduzi-lo para uma vida digna.

Consenso sobre o Estado palestino

O Estado de S. Paulo

G-20 apresenta a Israel o desafio de prever sua convivência com uma Palestina soberana

O consenso de chanceleres do G-20 sobre o estabelecimento de um Estado palestino, durante o recente encontro no Rio de Janeiro, deu mais um sinal de que esse antigo projeto pode afinal sair do papel. A rara unanimidade entre potências ocidentais e países emergentes sobre o tema abre a perspectiva de que essa iniciativa avance ainda neste ano, o que impõe a Israel a escolha entre participar do processo e influenciá-lo conforme seus interesses ou manter-se intransigente e se isolar ainda mais.

Sensatez, entretanto, é o que não se tem visto por parte de Israel. Malgrado a incontestável legitimidade de sua reação militar contra o Hamas depois das atrocidades cometidas pelos terroristas palestinos contra centenas de civis israelenses, em outubro passado, a operação em Gaza tem cobrado preço alto demais em vidas inocentes e, pior, praticamente inviabiliza a vida normal ali depois que a guerra acabar. Para piorar, os sequestrados pelo Hamas continuam reféns, e o grupo terrorista ainda demonstra algum vigor. Ou seja, os grandes objetivos de Israel ainda não foram cumpridos.

É nesse cenário que o governo israelense tem sido pressionado a negociar, inclusive pelo seu maior aliado, os Estados Unidos, como ficou claro na reunião técnica do G-20. “É um consenso entre todos nós, porque eu não ouvi ninguém dizer nada contra a solução de dois Estados. Então vamos tornar público”, disse o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell. O secretário de Estado americano, Anthony Blinken, manifestou seu apoio à criação do Estado palestino na reunião e também na conversa que teve com o presidente Lula da Silva.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, vinha evitando falar no pós-guerra, com receio de perder o apoio de seus aliados mais extremistas, que desejam a reocupação de Gaza, mas aparentemente a pressão internacional o obrigou a tocar no assunto. Ele afinal apresentou um plano intitulado “O Dia Seguinte ao Hamas”, em que estabelece suas prioridades na administração de Gaza depois da guerra. O território seria gerenciado por “autoridades locais” sem vinculação “com países ou grupos que apoiam o terrorismo”, mas o Exército israelense teria carta branca para agir na região para evitar a volta do terrorismo. Ademais, o plano estabelece uma faixa de segurança em Gaza, na fronteira com Israel, que será mantida “enquanto houver necessidade de segurança”.

Os EUA já se manifestaram contrários a qualquer redução do território de Gaza, mas é evidente que Israel não negociará nada enquanto não tiver garantias de segurança críveis. Sua intenção de obliterar o Hamas está em linha com esse imperativo, que não pode ser ignorado, sob pena de inviabilizar qualquer diálogo. Por outro lado, a segurança de Israel só será garantida se, do outro lado da fronteira, houver um Estado palestino funcional, viável e democrático – única forma de neutralizar os palestinos radicais que defendem a destruição de Israel e dos judeus.

Saneamento e dignidade

Correio Braziliense

São gritantes as desigualdades captadas pelo IBGE quando se detalham as informações. Dos 203 milhões de cidadãos, 24,3% não contam com o descarte adequado de esgoto, mas esse índice sobe para 68,6% entre pretos e pardos

Dados do Censo de 2022, elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que o Brasil avançou no acesso da população ao saneamento básico, mas as condições gerais ainda estão muito aquém do necessário. Entre 2010 e 2022, a proporção de lares com coleta adequada de esgoto passou de 64,5% para 75,7%. Ainda assim, 49 milhões de brasileiros não são atendidos por esse serviço. Isso em um país que se comprometeu com um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), das Nações Unidas, de ter 100% das casas ligadas a redes de saneamento até 2030.

São gritantes as desigualdades captadas pelo IBGE quando se detalham as informações. Dos 203 milhões de cidadãos, 24,3% não contam com o descarte adequado de esgoto, mas esse índice sobe para 68,6% entre pretos e pardos. Em 2.386 cidades, todas de pequeno porte, menos da metade das residências tem saneamento. As piores situações estão em áreas rurais e assentamentos informais nas periferias das grandes metrópoles, o que comprova que as políticas públicas estão voltadas apenas para as áreas urbanas.

Outro dado estarrecedor: 1,2 milhão de pessoas, dos quais 868 mil no Nordeste, não têm nenhum tipo de banheiro em casa, mesmo que improvisado. Por outro lado, 5,4 milhões vivem em moradias com quatro ou mais banheiros. Não é só: entre os 49 milhões sem rede coletora ou fossa séptica, a maioria despeja o esgoto em buracos ou fossas rudimentares. O restante usa rios, lagos e córregos para despejar os dejetos.

Essa realidade explica, em boa parte, os recorrentes problemas de saúde da população mais pobre, sujeita a doenças como diarreia, que mata milhares de crianças todos os anos, e verminoses. Também justifica os surtos de dengue, zika e chikungunya. Os resultados desse descaso, da ausência do Estado, são superlotação de hospitais, gastos excessivos com medicamentos e mortes que poderiam ser evitadas. Passou, portanto, da hora de se atacar os problemas com medidas efetivas, como dobrar ou mesmo triplicar os investimentos médios anuais em redes coletoras de esgoto.

Na avaliação de especialistas, os últimos anos mostraram que políticas públicas focadas, sem ideologia, podem trazer bons resultados. Pelo menos até 2015, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) conseguiu destravar obras importantes, especialmente no Nordeste, onde o total de lares com saneamento saltou de 59,2%, em 2010, para 64,5%, em 2022. A melhora geral no país, ao longo desse período, foi possível, ainda, por meio das parcerias público-privadas (PPPs), das concessões e das privatizações. Os investimentos privados têm feito a diferença.

São poucos os que acreditam na promessa do Brasil se integrar a totalidade das residências a redes coletoras de esgoto nos próximos seis anos. Contudo, é preciso persistir nesse compromisso, pois é inaceitável que tanta gente ainda seja submetida a condições de dois séculos atrás. No mundo político, sempre se disse que obras de saneamento básico, por ficarem debaixo da terra, não dão votos. Esse tipo de argumento é, no mínimo, uma aberração. Permitir que as pessoas tenham melhores condições de vida der ser princípio básico entre aqueles que exercem funções públicas.

Num país de tantos desperdícios, de verbas públicas aplicadas de forma errada e, muitas vezes, desviadas, a população não deve ser omitir, mesmo aquela parcela que pode escolher que banheiro vai usar em casa. É fundamental cobrar todas as esferas de governo, uma vez que têm responsabilidades a cumprir, para que a dignidade humana seja considerada na definição dos investimentos públicos.

É preciso ressaltar, também, que o novo marco do saneamento, aprovado em 2020, trouxe avanços importantes no sentido de melhorar a destinação de recursos para o setor, seja do ponto de vista público, seja do privado. Isso passa pelo empenho efetivo de governantes e legisladores a fim de que os interesses da população se sobreponham às artimanhas políticas, inclusive, para o bom andamento da economia. Foi a melhora da renda da população nos últimos anos, com a inflação sob controle, que permitiu a muitas famílias buscarem moradias em condições melhores. Mãos à obra.

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