quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Governo ainda deve solução eficaz para armamentismo

O Globo

Há mais de 1,6 milhão de armas em situação irregular e quase 1 milhão nas mãos de amadores

O avanço do armamentismo no governo passado se transformou em herança pesada para a gestão Luiz Inácio Lula da Silva. Dos 2,89 milhões de armas registradas na Polícia Federal (PF) em nome de civis, servidores públicos, policiais e guardas municipais para defesa pessoal, 1,6 milhão, mais da metade, está em situação irregular, com o registro vencido, de acordo com reportagem do Jornal Nacional. Esse total não inclui os Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs), a categoria de amadores que se multiplicou no governo Jair Bolsonaro, atraídos pela facilidade de comprar armas e munições.

De 2018 ao final de 2022, a quantidade de CACs sextuplicou, de 117.467 para 783.385. O novo governo suspendeu decretos armamentistas de Bolsonaro, determinou a concentração na PF do controle de todo o armamento em mãos de civis. Concluído no ano passado, o recadastramento da PF contou 939.154 armas em poder de amadores. Mas a resistência do Exército a abrir mão do controle dos CACs e da própria PF a assumir a função, alegando falta de estrutura, tem mantido intocado esse arsenal. As armas continuam em circulação e, como mostrou reportagem do GLOBO, os clubes de tiro continuam funcionando a pleno vapor. Pouco se avançou na solução desse grave problema.

A atuação da PF para apreender armas ilegais tem sido prejudicada pela legislação em vigor. De acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) formado em 2020, arma com registro vencido deixou de ser delito penal. Agora é enquadrada como mera irregularidade administrativa. Antes, a polícia podia instaurar inquérito e pedir ao juiz um mandado de busca e apreensão. Com a nova jurisprudência, é preciso esperar o desfecho do inquérito administrativo. Essa é a razão, segundo policiais federais, de tantas armas com registro vencido.

A maior concentração das armas, revelou reportagem do GLOBO, está em regiões ligadas ao agronegócio, em especial a pecuária. Há mais CACs no sul de Goiás, nas regiões de Rio Verde e Jataí, em Mato Grosso e no entorno do Parque do Xingu. Também no norte gaúcho e no interior de Santa Catarina e Paraná. Fica nesse estado a cidade com a maior concentração de armamentos: Clevelândia, com uma arma para cada 15 moradores.

Ainda que a maior parte do arsenal esteja no interior, persiste o risco nas cidades. Além do uso frequente por organizações criminosas de armamento comprado legalmente por CACs, cresce o risco de acidentes. No último fim de semana, explodiu em Campinas, interior de São Paulo, o apartamento do coronel da reserva Virgílio Parra Dias, que transformara sua despensa num paiol. Além de 35 quilos de pólvora, 3 mil munições e quase 20 mil cartuchos, havia no apartamento duas granadas e 111 armas, entre revólveres, rifles, fuzis e espingardas. Com o alastramento das chamas, 44 moradores tiveram de ser resgatados. O coronel Dias é registrado como CAC, informou o Comando Militar do Sudeste.

A falta de entendimento entre Exército, PF e governo tem atrasado a adoção de uma solução duradoura para a banalização da posse e do uso de armas sob Bolsonaro. Desastres como o de Campinas são apenas um exemplo do risco que o armamentismo representa para o país. Lula ainda deve a seus eleitores uma redução drástica no arsenal em poder da população.

Altruísmo extremo é mais comum do que costumamos imaginar

O Globo

Bravura do auxiliar de logística que salvou bebês e mãe de enxurrada reflete fatores culturais e evolutivos

‘Não pensei em nada. Só queria salvar a vida deles.’ Foi essa a explicação do auxiliar de logística Marcos Vinícius de Souza Vasconcelos, 20 anos, para seu ato heroico na semana passada. Dependurado num ônibus em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, ele resgatou duas bebês gêmeas de 1 ano e a mãe de dentro de um carro, depois arrastado pela enxurrada. Sua coragem evitou uma tragédia.

Conhecida como altruísmo extremo, a decisão de pôr a própria vida em risco para salvar desconhecidos é mais frequente do que parece. No final do ano passado, um motoboy brasileiro deteve com o capacete um homem que investia com uma faca contra transeuntes em Dublin, na Irlanda, onde vivia. No Pará, o pescador José Cardoso Lemos resgatou 35 pessoas de um barco naufragado em 2022. Esses são apenas dois exemplos. Heróis anônimos são muito mais comuns do que costumamos imaginar.

Nos Estados Unidos, um fundo criado pelo industrial Andrew Carnegie em 1904 premia anualmente quem pratica atos de heroísmo. Até hoje, mais de 100 mil pessoas foram inscritas e 10 mil medalhas foram entregues, 20% póstumas. Um estudo da Universidade Yale com os premiados mostra que a explicação de Marcos Vinícius é predominante entre os heróis. Quem se arrisca para salvar alguém em perigo geralmente toma a decisão em questão de segundos, sem pensar.

Do ponto de vista evolutivo, o comportamento dos heróis levanta uma questão paradoxal. Quem pratica atos de heroísmo tem mais chances de morrer e não passar adiante sua carga genética. O próprio Charles Darwin, diante do paradoxo, escreveu em 1871: “Aquele que estava pronto a sacrificar a sua vida (...) muitas vezes não deixava descendência para herdar sua natureza nobre. Os homens mais corajosos, que sempre estiveram dispostos a ir à frente de batalha na guerra e arriscavam livremente suas vidas pelos outros, pereciam, em média, em maior número”. Por essa lógica, altruístas extremos deveriam ter sido extintos faz tempo. Darwin não achou resposta.

Os estudiosos hoje desmentem esse paradoxo aparente lembrando que, ao longo da História humana, ter poder e ascendência sobre os pares sempre ajudou no acasalamento. E, para chegar a essa posição, evitar a pecha de covarde e conquistar o status de herói só ajuda. Quase 500 militares americanos que ganharam a Medalha de Honra na Segunda Guerra Mundial tiveram mais filhos que seus colegas das Forças Armadas.

Embora seja esclarecedora, a análise baseada apenas na genética desconsidera o peso da cultura no comportamento. Diferentes sociedades em todas as partes do planeta valorizam o altruísmo, algo que se manifesta em religiões, lares, novelas, filmes e livros. Marcos Vinícius sentiu isso ao abrir uma vaquinha on-line depois de sua família perder móveis e eletrodomésticos com as chuvas. A meta inicial era arrecadar R$ 6 mil. Em poucas horas, o total ultrapassou R$ 78 mil. Desde criança, ele queria ser bombeiro para “ajudar as pessoas”. Em bravura, já provou ser nota 10.

Lula deve um plano para a energia limpa

Folha de S. Paulo

Retórica pró-ambiente do governo contrasta com ausência de programa para a transição, em meio à expansão do petróleo

Para um país dado a perfilar-se como potência ambiental, suscita estranheza a ambivalência do Brasil quanto à transição energética. Sonha com a venda futura de biocombustíveis e hidrogênio verde para o mundo, mas no presente investe de fato em combustíveis fósseis.

Neste momento, nem mesmo contamos com um programa atualizado de enfrentamento da crise climática. O Plano Nacional sobre Mudança do Clima data de 2008 e só fixava objetivos até 2017.

Estamos, assim, em completa defasagem até com as metas nacionais para o Acordo de Paris (2015), que outros países estão a revisar para torná-las mais ambiciosas. A nova versão do plano brasileiro só deve sair em 2025, ano da COP30 marcada em Belém do Pará.

Falar é fácil, como fez em 2021 o então ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, no governo de Jair Bolsonaro (PL). O sucessor de Ricardo Salles anunciou na COP26 que o Brasil iria zerar suas emissões líquidas de carbono até 2050.

Falta pouco mais de um quarto de século para esse horizonte, mas qual era a trajetória programada para alcançar tal meta? Não havia, como não há.

Existe, sim, um projeto, em tudo contraditório com ela, de expandir a produção petrolífera, se possível para além de 2050. No recente Fórum Econômico Mundial, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (PSD), apostou que o petróleo ainda será fonte energética importante por 20 ou 30 anos.

Poderia ser só deslize de ministro sequioso de agradar a ala desenvolvimentista (para não dizer fóssil) no Planalto, mas parece política de governo. Na falta de um plano para o clima, cabe atentar para o Novo PAC lançado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Como assinalou Natalie Unterstell, do Instituto Talanoa, o eixo transição energética do PAC prevê recursos de R$ 565,4 bilhões, dos quais 64% para petróleo e gás e meros 12% para energia limpa. Os dois combustíveis fósseis receberão investimento principalmente do Estado, enquanto fontes alternativas dependerão de aportes privados.

Difícil imaginar expressão mais clara das reais prioridades do governo. Nem mesmo o argumento de que a renda dos fósseis financiaria a transição para de pé; se assim fosse, o direcionamento de recursos já estaria ocorrendo.

Foi-se o tempo em que o governo brasileiro podia posar de bom moço verde prometendo meramente reduzir o desmatamento, ainda nossa maior fonte individual de gases do efeito estufa.

Para projetar-se como liderança crível à frente da COP30, cabe-lhe apresentar até lá um plano minucioso de como pretende conciliar o ufanismo petrolífero com a inadiável transição energética.

Prevenir e tratar

Folha de S. Paulo

Com envelhecimento da população, SUS precisa controlar diabetes e hipertensão

Diabetes e hipertensão são duas das doenças crônicas não transmissíveis que precisam de acompanhamento contínuo. Entretanto 7 em cada 10 municípios não mediram a hemoglobina glicada e a pressão arterial em ao menos 50% dos pacientes com essas condições, como noticiou a Folha.

Essa é a meta estipulada pelo programa Previne Brasil, que em 2019 estabeleceu um modelo de financiamento das redes de saúde baseado no cumprimento de critérios de desempenho.

Desde lá, houve melhorias. No primeiro quadrimestre de 2022, a taxa de municípios que não atingiram o controle mínimo foi de 97% para diabetes e 95% para hipertensão; ao final daquele ano, 83% e 84%, respectivamente, com queda para para 74,8% e 72,8% em 2023.

Estamos longe, porém, da meta de 50%, também preconizada pela Organização Mundial de Saúde.

Segundo o último relatório global sobre a hipertensão da OMS, divulgado em 2023 com dados de 2019, 50,7 milhões de brasileiros entre 30 e 79 anos tinham a doença, o que representa 45% desse estrato —no mundo, a taxa é de 33%. Seria necessário atender mais 8,4 milhões de pacientes para atingir a marca de 50% de controle.

O número de pessoas com hipertensão no mundo dobrou entre 1990 e 2019, de 650 milhões para 1,3 bilhão. Fenômeno semelhante ocorre com a diabetes.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, a prevalência foi de 8,5% para 12,1% entre 2020 e 2023. Estudo da Universidade de Washington do ano passado aponta 529 milhões de pessoas com diabetes no mundo —e que o montante dobrará até 2050, ao atingir cerca de 1,3 bilhão.

Com o envelhecimento global da população, as doenças crônicas não transmissíveis, que matam 41 milhões de pessoas por ano (74% das mortes no mundo), serão acada vez mais comuns.

O lado bom é que são males preveníveis e controláveis. É preciso fortalecer a atenção primária em saúde e as taxas de controle. Deve-se atuar nas causas desde a mais tenra idade. Atividade física, dieta saudável, conter o tabagismo e o consumo de álcool são medidas capazes de salvar vidas.

Freio ao revisionismo histórico do STF

O Estado de S. Paulo

O ministro Mendonça autoriza a renegociação de valores dos acordos de leniência firmados por empresas pilhadas na Lava Jato, mas não a revisão da história, como pretendia Toffoli

Em audiência de conciliação anteontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça autorizou empresas que firmaram acordos de leniência no âmbito da Operação Lava Jato a renegociarem os termos pactuados com órgãos públicos. Na superfície, pode parecer que a decisão aprofunda ainda mais a bagunça institucional promovida pelo voluntarismo revisionista do ministro Dias Toffoli. Na prática, é um passo para pôr ordem na casa.

Em setembro passado, Toffoli fez terra arrasada de anos de trabalho de diversas instituições estatais, concedendo uma liminar que anulou todas as provas obtidas por meio do acordo de leniência da Odebrecht (hoje Novonor). Em dezembro, suspendeu a multa acertada com a J&F. Logo depois, suspendeu a multa da Odebrecht.

São decisões eivadas de impropriedades, na forma e no conteúdo. Toffoli deveria ter se declarado impedido na ação da J&F, de quem sua esposa é advogada. De resto, é incompetente. Toffoli assumiu sob sua jurisdição o pedido da J&F, sob o pretexto de que teria relação com uma ação proposta pela Odebrecht. Mas o acordo da J&F, celebrado com o Ministério Público Federal de Brasília sem qualquer relação com os casos de Curitiba, deveria ter sido redistribuído. Casos como esses, de imensa comoção pública e impacto multibilionário para o erário, deveriam ter sido submetidos imediatamente ao plenário. Mas Toffoli tomou decisões monocráticas, algumas em pleno recesso judiciário, cujos efeitos se mantêm.

Ainda mais absurda foi a sua fundamentação. Na decisão que anulou as provas obtidas com a Odebrecht, Toffoli descreveu a Lava Jato como uma imensa “conspiração” com o objetivo de “conquista do Estado”, o “ovo da serpente dos ataques à democracia e às instituições”. Essas alegações genéricas – que ecoam a narrativa lulopetista de um complô urdido pelo FBI e a Justiça brasileira para destruir empresas nacionais e golpear o “governo do povo” – basearam o entendimento de que 100% do que ocorreu na Lava Jato está contaminado.

Em concreto, a única justificativa relevante era de “dúvida razoável” a respeito da voluntariedade dos acordos. A alegação flagrantemente irrazoável é de que empresários amparados por batalhões de advogados dos mais caros do País teriam sido coagidos (no “pau de arara do século 21”, conforme Toffoli) a confessar crimes que não cometeram. A ser assim, os acordos deveriam ser anulados. Mas no entendimento de Toffoli o suposto constrangimento ilegal deve sustar o ônus dos acordos (como multas e restrições à participação em licitações públicas), preservando seu bônus (a não persecução penal).

Todas essas, por sinal, são as alegações dos autores da ação julgada por Mendonça, os partidos de esquerda PCdoB, PSOL e Solidariedade – incomumente sensibilizados com a “perseguição” sofrida por megaempresários num contexto de “Estado de coisas inconstitucional” –, para pedir que os acordos sejam invalidados.

Mas, se havia “dúvida razoável” de “constrangimento ilegal” das empresas, ela caiu por terra na audiência promovida por Mendonça: nenhuma delas sustentou este argumento. Ou seja, os crimes aconteceram, tal como foram confessados. O que as empresas querem é abrandar a sua classificação e, assim, o cálculo das multas. Mas os fatos, como afirmou o ministro, não estão sujeitos à revisão.

O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, gosta de dizer que o papel da Corte é ser uma vanguarda iluminista que empurra a história na direção certa. A ambição de Toffoli – que já disse que os ministros são “editores” do País – parece um pouco mais modesta: reescrever a história conforme a narrativa lulopetista. Mas, nesse afã, acabou sendo mais católico que o papa – nem os empresários admitem sua “tese da coação” – e a emenda saiu pior que o soneto – o próprio governo, de olho nas receitas polpudas pactuadas nos acordos, apresentou, por meio da Advocacia-Geral da União, um parecer questionando a suspensão das obrigações pecuniárias da Odebrecht.

O fato é que já passou da hora de o STF deixar a história seguir seu curso, e simplesmente aplicar a lei.

A maior dívida social do Brasil

O Estado de S. Paulo

O Marco do Saneamento abriu um leque de possibilidades de investimento. Mas o poder público, o maior responsável por perpetuar essa chaga civilizacional, ainda precisa fazer mais

O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e nada expõe mais essa desigualdade do que o acesso à água e ao esgoto. Segundo o Censo do IBGE, com dados de 2022, quase 50 milhões de brasileiros, 1/4 da população, não têm coleta de esgoto. Quase 40 milhões despejam seus dejetos em fossas rudimentares ou buracos e cerca de 4 milhões em rios, lagos ou no mar. Mais de 6 milhões de brasileiros não têm acesso à água e dependem de caminhões-pipa ou água da chuva, rios ou açudes sem o devido tratamento. Mas o problema pode estar subestimado: pelos critérios do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, de 2022, são 93 milhões de brasileiros (44%) sem coleta de esgoto e 33 milhões (15%) sem água tratada.

Os números do IBGE escancaram ainda a desigualdade regional. No Norte e no Nordeste, respectivamente, só 46% e 58% da população têm coleta de esgoto.

Para adicionar insulto à injúria, 1,2 milhão de crianças, segundo o Censo Escolar do Inep, estudam em colégios sem acesso à água potável.

Além da incidência de doenças relacionadas diretamente à exposição a ambientes sem saneamento (leptospirose, disenteria, tifo, cólera), a falta de saneamento impacta o meio ambiente, a produtividade do trabalho, o rendimento escolar, os valores imobiliários e o turismo. Segundo o Instituto Trata Brasil, a universalização do saneamento básico proporcionaria um retorno de R$ 1,125 trilhão nas próximas duas décadas.

Essa tragédia humanitária não é uma consequência natural da realidade socioeconômica do Brasil – o saneamento no País está bem abaixo da média de outros países de renda média-alta e mesmo de renda média. Portanto, é só incúria, pura e simples, do poder público.

Diferentemente de outros setores – como energia, telecomunicações e, em alguma medida, transportes –, que foram transformados por reformas que abriram os mercados nos anos 90, o saneamento permaneceu por mais duas décadas sob o modelo do monopólio estatal, à mercê da voracidade clientelista e corporativista. Não é uma coincidência que justamente nos Estados do Norte e Nordeste, onde esse modelo prevalece, o saneamento é mais periclitante.

O Marco do Saneamento, aprovado em 2020, buscou reverter esse quadro, definindo metas para a universalização, obrigando a licitação para a escolha dos prestadores, garantindo mais segurança jurídica à privatização das companhias estaduais, estimulando a prestação regionalizada de serviços e conferindo à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) o papel de padronizar a regulação e a fiscalização dos serviços.

Os resultados já se fazem sentir. Segundo as projeções da Carta de Infraestrutura da consultoria Inter.B, os investimentos totais em saneamento, que em 2022 somaram R$ 21,1 bilhões, devem chegar em 2024 a R$ 30,4 bilhões. A concorrência do setor privado deu inclusive um impulso ao investimento de algumas grandes empresas estatais. Ainda assim, para universalizar os serviços até 2033, será preciso atingir uma média anual de R$ 50 bilhões.

Tudo isso apesar dos tremores causados pelas tentativas do atual governo, frustradas pelo Congresso, de reverter as regras do Marco, restaurando privilégios obscenos e inconstitucionais das estatais.

Ainda há muito a fazer. A ANA ainda precisa regulamentar o sistema de prestação regional que viabilizará o chamado modelo “filé com osso” de contratos casados entre grandes municípios altamente rentáveis (o filé) e aqueles desprovidos de capacidade técnica e financeira (o osso). O Congresso ainda precisa regulamentar os regimes de exceção na reforma tributária, com o potencial de reduzir tarifas de serviços essenciais, como o saneamento. Investimentos mais substantivos podem ser destravados com formatos bem estruturados de concessões, PPPs ou venda de participação acionária. Fundamental é uma política fiscal crível e sustentável para melhorar a nota do País junto às agências de classificação de risco.

São medidas que devem estar no rol de prioridades máximas dos Três Poderes, nas instâncias federal, estaduais e municipais, se esta geração quiser sanar a maior chaga civilizacional da história brasileira.

A improvável meta fiscal

O Estado de S. Paulo

Acionamento dos impopulares gatilhos do arcabouço será o maior teste da credibilidade de Haddad

A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado reviu para cima sua estimativa inicial para as receitas geradas pelas medidas aprovadas pelo Congresso no ano passado. O órgão, que previa uma arrecadação extra de R$ 105,3 bilhões para este ano, elevou a projeção para R$ 130,4 bilhões na edição do Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de fevereiro. A nova previsão, no entanto, ainda corresponde a menos da metade dos R$ 274,7 bilhões que o Executivo espera obter no ano em que se propõe a zerar o déficit primário.

Os cálculos da IFI não foram exageradamente pessimistas, ao contrário. Para a instituição, a tributação dos fundos exclusivos, aprovada no fim do ano passado, deve render R$ 24,6 bilhões, bem mais que os R$ 13,3 bilhões previstos pelo próprio governo. Muitas das projeções da entidade correspondem exatamente àquelas que o Executivo calculou, como a arrecadação esperada com a taxação das apostas de quota fixa e com a reoneração dos combustíveis.

As inconsistências são as mesmas já mencionadas pela IFI em edições anteriores do relatório. O governo espera arrecadar R$ 35,3 bilhões com a cobrança de tributos federais em operações de subvenção estadual, bem mais que os R$ 7,6 bilhões considerados pela instituição, e recuperar R$ 97,9 bilhões em créditos em disputa no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), muito mais que os R$ 32,3 bilhões projetados pelo órgão. Do lado das despesas, a IFI acredita que o Executivo subestimou os desembolsos que terá com benefícios previdenciários em nada menos que R$ 24,1 bilhões.

Chama a atenção a insistência do governo em desprezar a renúncia gerada pela desoneração da folha de pagamento, aprovada pelo Congresso no ano passado. A IFI, de maneira prudente, estima uma renúncia de R$ 20 bilhões, mas o Executivo projeta uma perda de apenas R$ 5,6 bilhões – cenário que só seria factível se a medida provisória que reonera os 17 setores fosse aprovada pelo Congresso sem qualquer mudança.

Tal obstinação só se explica pela guerra que a Fazenda trava para manter a meta de déficit zero neste ano. Tudo que o ministro quer é postergar ao máximo a necessidade de contingenciar despesas, mesmo que os números só tenham validade no papel. Nas contas da IFI, o bloqueio teria de atingir R$ 49,7 bilhões para que o objetivo fosse cumprido.

Em paralelo, o governo também confia na benevolência do Tribunal de Contas da União (TCU). Espera que o órgão dê guarida à estapafúrdia tese de que o arcabouço fiscal e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) limitaram o contingenciamento em R$ 25,9 bilhões, ultrapassando diretrizes da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Caso a meta seja descumprida, e na hipótese de que não seja alterada antes disso, será preciso acionar os gatilhos previstos no arcabouço fiscal para ajustar o crescimento das despesas, o que promete ser o maior teste de credibilidade do ministro. Haddad pode até ganhar alguns meses com essa estratégia, mas não escapará do necessário debate de corte de gastos por muito tempo.

Inflação ainda tem um longo caminho até a meta

Valor Econômico

É desejo de todos que o Banco Central corte de forma mais acelerada e profunda os juros, mas, para tanto, seria preciso maior coordenação entre os instrumentos monetários e fiscais

O Banco Central fez progressos notáveis em baixar a inflação desde seu pico, em 2021, mas os índices de preços mais recentes sugerem que ainda há um bom caminho a percorrer para cumprir a meta de 3% estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN). Certamente, seria mais fácil se houvesse um maior alinhamento entre a política monetária e a fiscal, com uma postura mais austera na administração dos gastos públicos.

O IPCA-15 de fevereiro, que é a prévia do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), ficou em 0,78%, um pouco abaixo da mediana das projeções de consultorias e instituições financeiras coletadas pelo Valor Data, de 0,82%. A primeira reação do mercado financeiro foi positiva, com uma leve queda na curva de juros futuros. É bem provável que, a partir dessa surpresa, as projeções de inflação dos especialistas para o IPCA fechado de fevereiro sofram um recuo. Também podem se esperar impactos positivos para as expectativas de inflação de 2024, que na última semana já recuaram levemente, de 3,82% para 3,8%.

O índice de 0,78%, em si, é alto, representando mais do que o dobro do 0,31% de janeiro. Mas já era algo esperado. Todos os anos, nos meses de fevereiro, a inflação dá uma acelerada temporária porque entram em vigor os reajustes das mensalidades escolares. Neste mês, tivemos também o impacto negativo do aumento do ICMS cobrado pelos Estados nos combustíveis.

O que preocupa um pouco, no IPCA-15, é a falta de progressos na queda da inflação acumulada em 12 meses. Na verdade, o índice subiu levemente, de 4,47% para 4,49%, entre janeiro e fevereiro. É mais um dado que confirma que, depois da grande desinflação dos dois últimos anos, os avanços tendem a ser mais lentos daqui por diante.

Por ora, não há dúvida sobre a direção baixista, apesar do soluço do IPCA-15 de fevereiro. A aposta do próprio Banco Central é que esse processo de desinflação prossiga neste ano e no próximo, com o recuo do IPCA para 3,5% em 2024 e para 3,2% em 2025. Embora um pouco menos otimista, o mercado também acredita que a direção da inflação é de queda, para 3,8% em 2024 e 3,5% em 2025.

No entanto, essa é a estimativa feita pelos especialistas com base nos seus modelos macroeconômicos, que, por mais bem calibrados que sejam, na essência representam uma tentativa de prever o futuro. Os indicadores qualitativos de inflação - os chamados núcleos - efetivamente coletados e medidos a cada mês auxiliam para confirmar se as projeções estão no caminho certo.

De novo, a direção segue correta. A média dos cinco núcleos de inflação preferidos pelo Banco Central voltaram a recuar, nos dados acumulados em 12 meses, de 4,24% para 4,12%, e seguem abaixo da inflação cheia. Porém, atualmente eles não estão mais recuando com a mesma velocidade observada no segundo semestre de 2024.

Merece maior visibilidade um núcleo de inflação em especial: os serviços subjacentes, que apresentaram uma nova aceleração, de 4,91% para 4,99%, entre janeiro e fevereiro. É a terceira alta seguida. O Banco Central costuma acompanhar com atenção esse núcleo de inflação porque ele reflete mais de perto o grau de aquecimento da economia e de aperto no mercado de trabalho.

Até fins de 2023, todo esse conjunto de núcleos de inflação baixou de forma acelerada graças, em grande parte, ao recuo dos preços de alimentos, combustíveis e bens industriais, com a normalização das cadeias de fornecimento global depois da pandemia. Com a queda do índice, a inércia inflacionária perdeu força, levando a uma moderação inclusive nos preços de serviços.

Ao que parece, esse processo se esgotou. O recuo da inflação passou a depender mais diretamente dos esforços da política monetária, que, até agora, têm sido bem-sucedida em desacelerar a economia sem provocar uma recessão. O Banco Central está mantendo os juros sob rédea curta, promovendo cortes de 0,5 ponto percentual na taxa Selic e, ao mesmo tempo, sinalizando que vai manter os juros no campo restritivo.

É desejo de todos que o Banco Central corte de forma mais acelerada e profunda os juros, criando condições financeiras mais propícias para a volta dos investimentos na produção. Para tanto, porém, seria preciso maior coordenação entre os instrumentos monetários e fiscais.

Podem-se discutir os méritos de programas de gastos em particular, mas, no conjunto, a expansão da despesa está atuando na contramão dos esforços desinflacionários, por pelo menos dois canais. Primeiro, representa um aumento na demanda agregada, num momento em que a taxa Selic procura contê-la. Segundo, deteriora a percepção sobre a solvência do governo, pressionando a cotação do dólar e dificultado a ancoragem das expectativas de inflação.

Nada disso impede que o Banco Central cumpra o seu dever, mas o caminho tende a ser lento, como mostra o IPCA-15. Em termos práticos, ao fim do processo teremos juros mais altos e menos crescimento da economia.

Reforma sobre a renda: necessária e urgente

Correio Braziliense

Mais uma vez é preciso falar da necessidade de se promover uma reforma tributária sobre a renda, para que o custo do Estado não recaia de forma tão pesada sobre a classe média brasileira, sobretudo os trabalhadores, que têm o imposto descontado diretamente do salário

Termina amanhã o prazo para que as empresas entreguem aos trabalhadores o Informe de Rendimentos do ano de 2023 para que os mesmos possam, a partir de 15 de março, prestar contas ao fisco. Assim, mais uma vez é preciso falar da necessidade de se promover uma reforma tributária sobre a renda, para que o custo do Estado não recaia de forma tão pesada sobre a classe média brasileira, sobretudo os trabalhadores, que têm o imposto descontado diretamente do salário. O plano, embutido na própria reforma tributária, é que o governo encaminhe ao Congresso as alterações na tributação sobre a renda para que sejam apreciadas e votadas no primeiro semestre deste ano.

No entanto, especialistas e mercado financeiro não acreditam mais na possibilidade de a reforma dos impostos sobre a renda ser votada em 2024, principalmente por ser este um ano que terá eleições para prefeitos e vereadores nos 5.568 municípios do país, o que mobiliza parlamentares em suas bases eleitorais. O risco que se deve evitar é o de ela ficar parada na Câmara ou no Senado, como a reforma tributária, que tramitou por cerca de cinco anos após mais de 30 de discussões em torno do novo regramento tributário do país.

Se houve celeridade no ano passado por aprovar uma mudança nos impostos que incidem sobre o consumo, buscando atender aos interesses de todos os setores da economia, é lógico se esperar a mesma rapidez na condução das proposta que vão mudar a carga fiscal sobre a renda, sob pena de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva terminar seu mandato sem ver implantada sua promessa de campanha de elevar a isenção do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) para R$ 5 mil, um valor que vai isentar quem ganha três salários mínimos e meio.

Essa correção, no entanto, não deverá ocorrer com a eliminação de gastos com saúde e educação, pois são serviços que o Estado deveria prover a todos os brasileiros e, como não o faz, obriga uma parcela significativa dos contribuintes a lançar essas despesas, que são, sobretudo, um ressarcimento. Ao elevar a faixa de isenção e eliminar as deduções, o governo está dando com uma mão e tirando com a outra. E isso não deve ocorrer sob pena de ter um efeito contrário para o contribuinte que hoje tem despesas a deduzir.

A correção das alíquotas do Imposto de Renda é fundamental para os trabalhadores brasileiros que veem sua renda corroída pela inflação. Em uma comparação simples, as correções feitas na tabela do IR em 2023 e este ano representam um aumento de 49% no valor da isenção, que estava congelado em R$ 1.903,98 desde 2015. Nesses nove anos a inflação acumulada chega a 67,54%. Isso significa que a inflação corrói a renda de um lado e o governo leva parte dessa mesma renda, num quinhão cada vez maior em relação ao poder de compra do salário. A correção simples, pela inflação do período, levaria a faixa de isenção para R$ 3.189 já neste ano.

O valor é baixo e quase insignificante em relação ao que o governo deixou de arrecadar com isenções tributárias, que passaram de R$ 450 bilhões por ano, em números de 2022. Com a MP editada no início deste mês, o governo estima abrir mão de R$ 3,03 bilhões em 2024, o que representa 0,67% do total de isenções. Isso mostra que a correção da tabela não é um problema do ponto de vista fiscal, mas sim político. É preciso que essa barreira seja superada para que também os trabalhadores tenham a carga fiscal ajustada à sua renda e não à necessidade de caixa do governo, que nem sempre é rigoroso em relação a outros segmentos da sociedade.

 

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