quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Vera Magalhães - Política com tecla SAP

O Globo

Lula e Bolsonaro tentam editar declarações comprometedoras numa era em que vídeos deixam pouca margem para dúvida

Numa era em que declarações de políticos ganham as redes sociais, com direito a vídeo em questão de minutos, tentar reescrever declarações e adicionar “contextos” ou interpretações posteriores tem pouca validade para além de apaziguar as torcidas organizadas. Foi o que tentaram fazer, no mesmo dia, Lula e Jair Bolsonaro, com falas recentes que causaram celeuma.

O presidente concedeu entrevista ao jornalista Kennedy Alencar em que se apegou ao fato de não ter usado a palavra “Holocausto” em sua declaração em Adis Abeba, onde disse que o único precedente para o que Israel comete na Palestina tinha sido “quando Hitler resolveu matar os judeus”.

Não é preciso fazer um tratado de interpretação de texto para saber que a ausência da denominação histórica dada à matança dos judeus pela Alemanha nazista não elimina a comparação disparatada feita pelo presidente brasileiro.

Esse tipo de contorcionismo poderia e deveria ser evitado por Lula. Se ele não viu razões para se retratar da fala, não há por que achar que Holocausto foi “interpretação” de Benjamin Netanyahu. Não foi o primeiro-ministro de Israel que deu nome ao evento histórico nefasto do Holocausto.

E, se é verdade que o governo de Israel surfou no episódio da fala de Lula de formas bem pouco republicanas e tentou extrair dele dividendos políticos num momento de contestação interna, isso não atenua o fato de a declaração de Lula ter ferido judeus brasileiros e do mundo todo, e a eles deveria ser dirigida alguma reflexão do petista a respeito. Não um truque retórico, mas uma sincera avaliação a respeito de comparar momentos históricos que não se prestam a isso, quando não era necessário fazê-lo para pressionar pelo fim imediato das violações humanitárias e crimes de guerra em Gaza.

A tentativa canhestra de aliados de Jair Bolsonaro de socorrê-lo das próprias palavras na Avenida Paulista soa a desespero. É sabido que a autossuficiência de Bolsonaro geralmente lhe rende complicações judiciais e policiais, e já era previsível que, colocado diante de uma multidão vestida de camisas da Seleção Brasileira, ele tivesse grandes chances de produzir evidências contra si mesmo.

Foi o que fez ao tentar se desvencilhar das minutas golpistas que circularam livremente pelo governo, a ponto de guardar a cópia de uma delas meses depois em seu escritório no PL. Acabou por admitir sua existência, ainda que minimizando a gravidade.

De nada adiantará o esforço de reescrita das palavras do ex-presidente feita por advogados e assessores. A fala fartamente distribuída nas tão veneradas redes sociais bolsonaristas já está em poder da Polícia Federal e deverá ser usada como prova de corroboração de evidências já reunidas pelos investigadores a respeito das sucessivas tramas golpistas lideradas pelo então chefe do Poder Executivo.

Tanto Lula quanto Bolsonaro escorregaram na mesma armadilha política, ainda mais tentadora em tempos de polarização inflamada: falar para as claques.

O presidente pouco ou nada agregou em termos de apoio interno ao comparar a ofensiva israelense contra os palestinos ao Holocausto, com ou sem o título. Pode ter emocionado a ala mais radicalizada da esquerda, mas assustou a mais moderada e ainda provocou aversão na comunidade judaica, que, como se viu na Paulista no domingo, acaba se voltando para Bolsonaro diante dessa revolta.

Bolsonaro também não teria nada a ganhar do ponto de vista jurídico conclamando uma micareta golpista na Paulista. Mas ficou todo orgulhoso ao constatar o que pesquisas já mostravam: mantém a ascendência sobre parcela significativa do eleitorado. Que de nada adianta diante de sua inelegibilidade e que não terá valia também diante das esperadas complicações dos demais inquéritos a que responde e para os quais não cansa de fornecer evidências.

 

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