quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Vinicius Torres Freire - Milei, o tirano birrento

Folha de S. Paulo

Governo conseguiu apoio político para uma reforma de centro-direita, mas 'el loco' quer mais

Javier Milei ainda quer fazer revolução. Quer poderes incontestáveis de reformar ou virar do avesso a economia, o Estado, direitos civis, políticos etc.

Argentina precisa mesmo de reformas profundas. Muito eleitor e mesmo parte considerável da "casta", parlamentares, estão dispostos a discutir essa mudança. Até agora, porém, "el loco" está cumprindo sua promessa reiterada de que não negocia nada.

Imaginar que a Argentina de Milei embarcou em um processo e um debate de reformas é uma incompreensão grande do que se passa nos vizinhos, para ser ameno.

"El loco" quer poderes extraordinários, por concessão legal, de baixar decretos. Contrariado, o governismo voltou a falar de lançar plebiscitos, o que não pode fazer, nos casos daqueles que de fato resultam em leis, "vinculantes" (depende de iniciativa do Congresso).

Até a semana passada, era comum ler e ouvir no Brasil que Milei obtivera "vitórias" no Congresso. Hum. Para um presidente que tem apenas 38 de 257 deputados da Câmara, poderia até ser um progresso que seu pacotão de leis não tivesse sido bloqueado ou trucidado logo de início.

O fato é que o pacotão foi talhado em mais da metade antes de ir para o plenário, até porque o governo retirou da pauta artigos que estavam marcados para morrer. No entanto, viu-se que o governo poderia contar com uma maioria mínima disposta ao menos a conversar.

Somados os deputados da "Libertad Avanza" de Milei com os da oposição "dialoguista", até terça-feira (6) o governo parecia ter algo entre 130 e 134 deputados.

Milei não quer conversar. Ao ver uma mínima parte de seu pacotão cair na Câmara, retirou o projeto. Chamou mesmo opositores amigáveis de delinquentes, bestas, traidores e chantagistas. Insultou governadores "centristas" (muristas), dispostos a negociar —governadores de províncias têm mais influência sobre parlamentares do que no Brasil.

A "Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos" e seus mais de 600 artigos voltam ao início do processo de tramitação. Entre delírios de grandeza e de outros tipos, há lá reforma relevante.

O plano de controle de gasto público depende apenas em parte dessa lei "omnibus" (25% ou menos, na conta do ministério da Economia). Em tese, portanto, seria possível começar a tocar um plano de estabilização macroeconômica sem Milei ter poderes amalucados.

No entanto, não há propriamente plano de estabilização, um programa sequenciado de medidas e seus fundamentos, com metas parciais e outros requisitos. Há uma meta de zerar o déficit, que depende de impostos (de lei) e de cortes violentos.

Por exemplo, depende de corte de subsídios de transporte e energia, o que está acontecendo. Depende de redução do valor de aposentadorias (meio na marra e pela inflação), de cancelamento total de obras públicas e redução drástica de transferências de recursos para as províncias ("estados"). Depende de taxas de juros menores —as taxas argentinas são negativas.

FMI apoia Milei, ao menos por ora, e soltou dinheiro bastante para evitar calote até abril.

Em parte, esse improviso parece insustentável. Além do mais, há outras necessidades básicas: a criação de um mercado de dívida pública, de um banco central organizado (Milei quer acabar com tudo), alguma regra fiscal, mercado de câmbio racional, revisão de impostos esdrúxulos.

Por ora, contém-se estouro ainda maior da inflação com o plano/promessa de estabilizar a taxa de câmbio oficial, ou quase (haverá minidesvalorizações, depois da máxi). Com a inflação descabelada, essa taxa de câmbio não vai ajudar mais nada em um trimestre.

A prioridade de Milei, porém, é uma espécie de tirania consentida, não um processo pensado de reforma conversada. Bidu.

 

Um comentário: