Valor Econômico
Passados 60 anos do golpe, governo e Forças Armadas tentam clima de pacificação
Às vésperas da data que marcará os 60 anos do
golpe militar, que instituiu uma ditadura de 21 anos, e após 15 meses dos
atentados antidemocráticos, que envolveram civis e militares, a relação do
governo federal com a cúpula das Forças Armadas é de
pacificação. Mas a despolitização dos quartéis ainda é um desafio,
enquanto o Congresso resiste ao projeto do Executivo que proíbe
militares da ativa de disputarem eleições.
Em declarações recentes, o ministro da
Defesa, José Múcio Monteiro, reiterou que as relações entre o governo e as
Forças Armadas estão “pacificadas”. Com o objetivo de preservar esse ambiente
de estabilidade, um pacto velado, selado nos bastidores entre o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, o Ministério da Defesa e os comandos das três Forças
estabeleceu que não haverá
protestos, pelo lado do governo federal, nem comemorações ou leitura
de ordem do dia nos quartéis pela passagem deste 31 de março. A palavra de
ordem da vez é silêncio.
O Valor procurou os ministros da Defesa, José Múcio, e dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, bem como as assessorias dos comandos das três Forças para que se manifestassem sobre esse acordo de discrição, mas nenhuma das partes quis se pronunciar.
Dos dois lados, a avaliação é de que o esforço
comum deve ser no sentido de evitar novos atritos, até porque fatos recentes
causaram mais desconforto do lado militar. Após o vazamento de uma conversa, na
qual quebrou o sigilo da delação premiada e atacou a Polícia Federal (PF)
e o relator do inquérito sobre os atos antidemocráticos no Supremo
Tribunal Federal (STF), ministro Alexandre de Moraes, o
tenente-coronel Mauro Cid, um quadro da ativa, foi mandado de volta à
prisão no dia 22 de março.
A nova detenção do ex-ajudante de ordens do
ex-presidente Jair Bolsonaro mal havia sido digerida quando, no
domingo (24), a revelação dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e
do motorista Anderson Gomes provocou novo mal-estar no Exército. Isso
porque o ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Rivaldo
Barbosa, preso e suspeito de planejar o crime, foi nomeado para o cargo pelos
militares à frente da intervenção na segurança pública fluminense, os
generais Walter Braga Netto (então um quadro da ativa, nomeado
interventor-geral) e Richard Nunes, secretário de Segurança Pública.
Braga Netto divulgou nota atribuindo a
nomeação de Rivaldo a um “ato protocolar”. O general Richard Nunes, atual chefe
do Departamento de Educação e Cultura do Exército, afirmou, em entrevista
ao Valor publicada no dia 26, que indicou o delegado na ocasião
porque ele era qualificado para o cargo: havia sido chefe da Divisão de
Homicídios, era um dos quadros mais atuantes e reconhecido. “O desgaste do
Exército é muito mais por outras razões supervenientes”, argumentou.
Uma fonte do alto escalão do Exército
observou que há muitos anos já havia se tornado tradição nos quartéis que não
houvesse leitura de ordem do dia relativa ao 31 de março. Ponderou que essa
rotina foi interrompida somente nos quatro anos da gestão de Jair Bolsonaro, e
que a normalidade foi retomada no primeiro ano do governo Lula. Por isso,
destacou que a passagem da data neste ano não será diferente do ano passado,
mesmo em face dos 60 anos do fato histórico.
A mesma fonte militar ressalvou que eventos
para relembrar a data que serão promovidos, de um lado, pelo Clube Militar, que
reúne oficiais da reserva, e do outro, por partidos políticos e organizações da
sociedade civil são positivos porque fazem parte da democracia. “O Clube
Militar tem CNPJ diferente do Exército, são generais da reserva, eles têm o
direito de comemorar”, argumentou. “Precisamos é de paz para seguir em frente”,
complementou.
Nessa quadra de “estabilidade”, havia uma
expectativa de que a votação da PEC dos militares no Congresso se
materializasse em um “símbolo” da conciliação do governo com as Forças Armadas.
Trata-se da proposta de emenda constitucional (PEC), que proíbe militares da
ativa de se candidatarem nas eleições, e tem como principal objetivo a
despolitização dos quartéis.
O texto foi aprovado na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado em novembro do ano passado, em votação
relâmpago. Apenas os senadores Sergio Moro (União Brasil-PR) e Flávio
Bolsonaro (PL-RJ) foram contrários ao texto. “A intenção dessa PEC é para
dar recado, como se militares fossem uma subcategoria de servidores”, criticou
Flávio na ocasião.
Logo depois, entretanto, não houve acordo
para levar a matéria ao plenário. No começo do mês, Múcio circulou pelos
gabinetes tentando minar a resistência dos senadores ao projeto para tentar
viabilizar a votação em abril. A principal controvérsia é de que, ao ser
transferido para a reserva no registro da candidatura, o militar corre o risco
de ficar sem salário se não se eleger. Isso porque só entra para a reserva
remunerada o oficial que completar 35 anos de carreira.
“O militar terá 25 anos [no Exército], mas ao
se candidatar, e perder a eleição, vai perder tudo [da carreira]?”, questionou
o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), ao Valor. Há cerca de duas
semanas, ele discutiu o tema com Múcio, e apresentou a contraproposta pela
criação de uma remuneração aos militares-candidatos proporcional ao tempo de
serviço, alcançando aqueles que não tenham os 35 anos de serviços prestados.
Para Mourão, que é general da reserva, essa
remuneração proporcional tornaria a PEC pelo menos “razoável”. O Valor apurou,
todavia, que essa sugestão foi levada à apreciação do governo e das cúpulas
militares, mas não houve receptividade. O líder do governo, senador Jaques
Wagner (PT-BA), já foi comunicado de que deverá continuar articulando a votação
do texto nos termos em que foi aprovado na CCJ.
Mesmo assim, o senador do Republicanos
opõe-se ao conceito de que o militar que disputar uma eleição, e perder, não
possa retornar ao quartel ao risco de “politizar” o ambiente.
O ex-vice-presidente argumenta que o número
de candidatos é mínimo perante o efetivo: foram 32 postulantes no pleito de
2022, ante 360 mil militares nas três Forças, entre integrantes da carreira e
temporários. Acrescenta que um militar não tem raiz, porque está sempre em
remoção para outro Estado. Por isso, não teria como “fazer política” nos
quartéis, seja pela disciplina, seja porque estaria sempre de mudança, ao
contrário dos políticos tradicionais, que atuam sempre em um reduto onde
fidelizam eleitores.
Em contraponto, o deputado Carlos
Zarattini (PT-SP) ponderou que a regra em discussão é a mesma já aplicada aos
juízes e promotores, que devem se desligar da carreira se quiserem concorrer a
cargos eletivos. “Por que o militar que também é de uma carreira de Estado tem
de ser diferente”, questionou o petista.
Zarattini é coautor, ao lado do vice-líder do
governo, Alencar Santana (PT-SP), de outra proposta de emenda
constitucional que também restringe a atuação dos militares da ativa na
política, mas vai além, ao alterar a redação do artigo 142 da Constituição
Federal. O texto dos petistas afasta a interpretação de que as Forças Armadas
exerceriam um “poder moderador” acima dos três Poderes - conforme tem sido
apregoado pelo bolsonarismo - e extingue as Operações de Garantia da Lei e da
Ordem (GLOs).
Zarattini admite que as Forças Armadas sejam
convocadas para atuar em operações de segurança pública, como em episódios de
greves das polícias militares (como ocorrido no Espírito Santo e no Ceará), mas
propõe que a medida seja submetida à aprovação do Congresso Nacional. “Torna
mais democrática essa questão”, justificou. No levante civil e militar de 8 de
Janeiro, auxiliares de Lula sugeriram que ele decretasse uma GLO para conter a
rebelião, mas prevaleceu o temor de outra ala de que, ao colocar os militares
no controle da crise, um golpe de Estado se consumasse.
Enquanto a PEC não avança no plenário, a CCJ
do Senado pode apreciar, nas próximas semanas, o projeto do Novo Código
Eleitoral. Relatado pelo senador Marcelo Castro (MDB-PI), o texto traz uma
regra ainda mais restritiva, para que os militares sejam transferidos para a
reserva “quatro anos antes” de disputarem uma eleição. A norma, se aprovada,
alcança outras carreiras, como policiais militares e demais agentes públicos, e
entraria em vigor em 2026.
Há uma percepção no Congresso de que as
principais forças políticas, incluindo o Centrão, vão se aglutinar em torno de
algum modelo que efetivamente limite a participação de militares nas eleições.
Segundo um parlamentar experiente, não é interesse de nenhum político
tradicional, nem da direita nem da esquerda, que os militares continuem tendo
protagonismo nas eleições. “Se vão ocupar o lugar dos políticos tradicionais,
que venham disputar em igualdade de condições”, argumentou.
Em meio ao impasse, uma fonte do alto escalão
do Exército argumentou, citando o ministro José Múcio, que é preciso “mais
para-brisa e menos retrovisor”. A avaliação é que nos últimos 60 anos, houve
lama nos retrovisores de ambos os lados.
Após a retomada democrática, com a posse do
presidente José Sarney em 1985, os militares haviam se mantido distantes da
atividade política. Essa postura foi rompida após três décadas, em abril de
2018, com uma postagem do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, na
rede social afirmando que a Força Terrestre compartilhava o “anseio de todos os
cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição”. Era
véspera do julgamento no STF de um habeas corpus que deixaria Lula, então pré-candidato
à Presidência, em liberdade.
Lula foi preso, Bolsonaro venceu as eleições,
e em sua administração, alçou aos principais postos do Executivo federal
quadros do alto escalão das Forças, principalmente do Exército. A boa relação
do Alto Comando das Forças com o ex-capitão esgarçou-se, aos poucos, à medida
que ele intensificava a ofensiva contra as instituições democráticas e
levantava suspeitas não comprovadas contra o sistema eleitoral.
Quando Lula elegeu-se presidente pela terceira vez em 2022, a escolha de José Múcio para ministro da Defesa contrariou alas do PT, mas foi vista como um aceno importante aos militares pelo seu perfil conservador, com trânsito entre políticos de todos os matizes. O início do governo Lula 3 foi marcado por sobressaltos como os ataques de 8 de janeiro, que envolveram quadros militares, e a surpreendente demissão do então comandante do Exército, Júlio Arruda, que não completou um mês no cargo. A partir da posse do comandante Tomás Paiva em fevereiro de 2023, pode-se afirmar que as relações do governo com as cúpulas militares navegam em águas tranquilas. A politização nos quartéis ainda não debelada, entretanto, surge como a ponta do iceberg.
Uma grande síntese, muito boa! Parabéns à colunista e ao blog que divulga o seu trabalho!
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