CartaCapital
Os militares, insuflados pelos senhores, deram o golpe. Mas quem puxava as cordas eram os norte-americanos
No início dos anos 60, a sociedade brasileira
vivia uma era de saudável e promissora agitação política. Batizado, na época,
como “luta de classes”, o fenômeno era decorrência inevitável de quatro décadas
de industrialização, modernização econômica e rápida transformação social. O
progresso material das sociedades modernas suscita inconvenientes e
transtornos, mas é mobilizador de energias e ideias. Os sindicatos, as
associações de classe e as organizações estudantis fervilhavam. Os centros
acadêmicos, a UEE e a UNE participavam ativamente do debate nacional.
Ainda não se sabe se a despeito ou por conta do jogo estratégico entre as duas grandes potências, o pós-Guerra foi generoso com alguns países da periferia, sobretudo com o Brasil. Entre seus pares, o país tropical era líder no campeonato de taxas de crescimento e de incorporação de novas atividades e de trabalhadores ao mundo da indústria e das cidades. Havia entusiasmo e, provavelmente, muita ilusão. Mas já disse alguém que as ilusões são necessárias e, em muitos casos, estimulantes.
Era, então, possível e razoável imaginar o País cada vez mais próximo de uma sociedade justa e contemporânea, expurgada da herança colonial e de seus humores subalternos. Alguns chamavam essa esperança de socialismo. Outros almejavam que a utopia se assemelhasse às condições de vida e aos padrões de convivência que estavam em construção na Europa Ocidental com o avanço do Estado do Bem-Estar Social.
Na outra ponta do espectro político estava a
malta do fazendão subdesenvolvido que combinava cosmopolitismo americanista com
a reconhecida ojeriza pela difusão da luz elétrica e da água encanada para o
povo mais pobre. Seja como for, a bandeira das forças progressistas foi
desfraldada na defesa das reformas de base – agrária, urbana, bancária,
trabalhista e previdenciária. As hostes conservadoras e reacionárias, que nunca
abandonaram a luta contra o projeto nacional de industrialização, brandiam os
chavões da ameaça comunista, do ouro de Moscou, da “cubanização” do Brasil.
Sessenta anos depois, é recomendável alguma
frieza na análise: como todos os periféricos, éramos, à esquerda e à direita,
protagonistas dos conflitos que se desenvolviam nos palcos globais da Guerra
Fria. Vou retomar um texto já publicado em nossa CartaCapital para amparar
minhas digressões a respeito da importância da participação norte-americana
no golpe
civil-militar de 1964. Terça-feira, 7 de janeiro de 2014, foi
anunciada a “descoberta” de uma gravação reveladora. Nos idos de 1963, o então
presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy, gravou a conversa com seu
embaixador no Brasil. Kennedy perguntou a Lincoln Gordon se os EUA poderiam
“intervir militarmente” no Brasil para depor o presidente João Goulart. Às
vésperas do famigerado golpe, surgiu um slogan premonitório: “Basta de
intermediários, Lincoln Gordon para presidente”.
Em seu livro A Segunda Chance do Brasil,
subtítulo A Caminho do Primeiro Mundo, publicado em 2002, Gordon relata um
encontro na Casa Branca com o presidente Kennedy: “Durante a reunião na Casa
Branca, eu alertei o presidente Kennedy sobre a possibilidade de algum tipo de
ação pelos militares
brasileiros e ele perguntou qual deveria ser a nossa atitude”.
Depois de tergiversar, enrolar com considerações a respeito da admiração de
Goulart pelo presidente norte-americano, Gordon foi ao que interessava e
concluiu: “O mais importante é ao mesmo tempo organizar as forças tanto
políticas quanto militares para reduzir o poder de Goulart […] ou, em uma
situação extrema, destituí-lo, se as coisas chegarem a esse ponto, o que
dependeria de uma ação explícita de sua parte”. Minutos depois, o subsecretário
para Assuntos Interamericanos, Richard Goodwin, observou: ‘Podemos muito bem
querer que eles (militares brasileiros) assumam o poder no fim do ano, se eles
puderem fazer isso”.
Como todos os periféricos, éramos, à esquerda
e à direita, peças no joguete da Guerra Fria
Na nota de rodapé da página 325 da primeira
edição do livro publicado pela Editora Senac, Gordon escreve: “Para minha
surpresa, revelou-se recentemente que o presidente Kennedy tinha instalado um
aparelho de gravação no Salão Oval. Nessa conversa de 30 de julho, que incluiu
também Richard Goodwin, foi a primeira reunião a ser gravada. A transcrição tem
muitos hiatos (sic), alguns por razões de segurança, outros porque certas
passagens não puderam ser decifradas. A maior parte desse material está disponível
agora nas páginas 9 a 25 de Timothy Naftali (Org.) The Presidential
Records, John F. Kennedy, The Great Crisis, Vol. 1, 2001.”
Gordon conspirava abertamente com as
“forças democráticas” nativas, aquelas que estão permanentemente a arquitetar a
supressão da democracia. Da conspirata participavam naturalmente os homens de
bem: ricos de todos os gêneros, parte da classe média ilustrada, semi-ilustrada
e deslustrada. Até mesmo os habitantes de outras galáxias sabiam que senhores
da mídia tupiniquim estavam metidos até a raiz dos cabelos nas conversações e
maquinações conspiratórias articuladas por Gordon. É surpreendente que manifestem
surpresa com as palavras de Kennedy registradas na gravação.
Segue o enterro: a situação política,
continua Gordon, “me levou a endossar a sugestão da CIA de que fornecesse
dinheiro a candidatos amigáveis”. Para tanto, a agência norte-americana de
espionagem e informação valeu-se do Ibad, o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática, criado em 1959 por um certo Ivan Hasslocher com o propósito de
combater o governo Juscelino Kubitschek, que, sabem todos, era um perigoso
aliado do comunismo internacional.
Os Estados Unidos haviam patrocinado a
deposição de Jacobo Árbenz na Guatemala e instigaram a queda de Juan Domingo
Perón na Argentina. O suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e a coragem do então
general Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra, em 11 de
novembro de 1955, abortaram as tentativas de interrupção da normalidade
institucional no Brasil. Mas, em março de1964, o País entrou finalmente no
roteiro dos “golpes democráticos” gestados em Washington.
Está mais do que provado há tempos que a
participação da CIA e de outras agências norte-americanas no golpe foi
decisiva. Washington foi generosa na transferência de tecnologia: enviaram
experts nas técnicas de tortura, conforme depoimento insuspeito e digno de
muitos oficiais brasileiros que se recusaram a compactuar com os torturadores.
Na Terra Brasilis, a camarilha do vira-latismo preparou seu arsenal golpista,
amontoando os argumentos de sempre para brecar o avanço dos movimentos
reformistas e progressistas. Ontem como hoje, sacam da algibeira o nheco-nheco
do “perigo comunista”.
No excelente livro 1964: História do Regime
Militar Brasileiro, Marcos Napolitano observa na lógica particular da classe
média brasileira, a ascensão dos “de baixo” é sempre vista como ameaça àqueles
que estão nos andares de cima do edifício social. Como os que estão na
cobertura têm mais recursos para se proteger, quem está mais perto da base da
pirâmide social se sente mais ameaçado. Não por acaso, o fantasma do comunismo
encontrou mais eco nesses segmentos médios. As classes médias, bombardeadas
pelos discursos anticomunistas da imprensa e de várias entidades civis e
religiosas reacionárias, acreditaram piamente que Moscou tramava para
conquistar o Brasil, ameaçando a civilização cristã, as hierarquias “naturais”
da sociedade e a liberdade individual.
Os “homens de bem” da época e a mídia estavam
metidos até a raiz dos cabelos nas maquinações conspiratórias dos EUA
Vou relembrar a Marcha da Família com Deus
pela Liberdade, entre tantas manifestações que alertavam para os ricos da
derrocada da sociedade brasileira no abismo do socialismo ou coisa parecida. No
dia 19 de março de 1964, as ruas de São Paulo foram tomadas por uma multidão
capitaneada por entidades conservadoras, entre tantas a União Cívica Feminina,
que abrigava em seu comando senhoras da alta e da média-alta sociedade.
A multidão reuniu-se na Praça da República e
marchou até a Praça da Sé, atravessando o Centro da cidade. Observei a tigrada
percorrendo a Rua Barão de Itapetininga. Lancei o olhar desde um andar do
edifício da Editora Brasiliense, na companhia do meu companheiro de todas as
horas, o professor João Manuel Cardoso de Mello.
Terminada a procissão dos patriotas, dona
Stella, irmã do conhecido Paulo Machado de Carvalho e admiradora de Adolf
Hitler, partiu em visita à família Cardoso de Mello. Dona Adelaide, mãe do
professor João Manuel, indagou Stella a respeito da Marcha:
– Stella, com foi a marcha das grã-finas?
Resposta:
– Grã-finas? Nada disso. Tinha até uns pretos
Pano Rápido.
*Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital,
em 03 de abril de 2024.
Deixou de ser babaca para ser um FDP², ou seja. Farsante Da Política e Filho De Putin.
ResponderExcluirMAM
Excelente! Nunca é demais lembrar a participação decisiva do governo estadunidense e da mídia brasileira no golpe militar de 1964, bem como do grande empresariado brasileiro e dos políticos "liberais" na "revolução" que nos deixou por 20 anos sob uma DITADURA MILITAR.
ResponderExcluirO historiador, jornalista, sociólogo e professor, Dr. Juremir Machado da Silva, cunhou a expressão GOLPE MIDIÁTICO-CIVIL-MILITAR para o título de um de seus livros. Ele tem republicado algumas partes do livro no sítio eletrônico:
matinaljornalismo.com.br/categoria/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/
A verdade nua e crua em carne-viva.
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