sábado, 30 de março de 2024

Demétrio Magnoli - A Rússia de cada um

Folha de S. Paulo

País não é um monólito sempre igual a si mesmo

Visitei a Rússia em 2017. Num centro comercial de São Petersburgo, à procura de uma informação, indaguei de uma jovem, cabelo pintado de azul, se ela falava inglês. "Sim, claro. Todo mundo nessa cidade fala inglês e francês". Na Rússia, quase todos só entendem o russo –mas a nação moderna da garota e seu círculo cosmopolita de amigos é tão real quanto a "Rússia eterna" que a envolve. Pondé equivoca-se ao enxergar a Rússia como um monólito adornado pela face de Putin (shorturl.at/yM237).

Seu argumento central apoia-se na recusa histórica da Rússia em tornar-se um país europeu. De fato, porém, ao longo de séculos, a elite russa oscilou entre tal recusa e um desejo intenso de ser Europa. São Petersburgo nasceu da pulsão europeísta, assim como a densa teia de uniões dinásticas entre os governantes russos e seu pares europeus.

A pulsão oposta, expressa pela aliança entre o trono dos czares e a igreja ortodoxa, desdobrou-se no pan-eslavismo e em incessantes guerras de conquista. O próprio Putin foi europeísta, no início, até girar rumo ao nacionalismo grão-russo.

Cada um tem a Rússia que quer. Comentando sua entrevista-propaganda com Putin, Tucker Carlson, arauto da extrema direita americana, comparou a limpeza do metrô de Moscou, com suas estações imponentes em estilo art-nouveau ou realismo socialista, à sujeira e aos grafites do metrô de Nova York. Decifrada a senha racial (o incômodo de Carlson é com o Harlem e o Bronx), registre-se: a Rússia dele é o país branco, cristão, tradicional que, tão diferente dos EUA, já quase não encontra paralelos na Europa.

A Rússia de um PT embevecido pelo "feito histórico" da reeleição de Putin com 87% dos votos é outra: a potência nuclear que faz contraponto ao "imperialismo americano". Na Europa, o século 20 ensinou à esquerda o valor da democracia e de uma ordem internacional baseada em regras. Na América Latina, porém, predomina ainda uma esquerda presa à caverna do terceiro-mundismo e à figura mítica de Che Guevara. A Rússia da esquerda fossilizada ressurge na guerra imperial na Ucrânia. Para ela, Putin é uma espécie de Lênin reciclado.

Faz-se gato e sapato do conceito de representação. O militante identitário quer um Congresso "mais representativo" pela introdução de cotas raciais no sistema eleitoral, "corrigindo" a vontade do eleitorado. Talvez inspirado pelo PT, Pondé sugere que Putin representa os russos pois "ganhou a eleição com folga". Maduro também ganhará, se vetar todos os opositores genuínos, perpetuando-se no palácio via eleições farsescas, como tantos ditadores.

No dia da vitória "com folga", a organização de Navalni convocou o protesto silencioso possível: votar no mesmo horário, anulando as cédulas com frases de protesto. As longas filas do "meio-dia contra Putin", registradas nas grandes cidades, provam que, abaixo da superfície congelada, a oposição existe. A "Rússia verdadeira" não é uma projeção da imagem de Putin – nem tem as feições de Navalni. A "alma profunda" das nações é só um mito invocado por ideólogos e embusteiros.

A praça Vermelha, umbigo de Moscou, delimita-se ao norte pela catedral de Basílio e a leste pelas muralhas do Kremlin, dois símbolos da "Rússia eterna" refletidos na águia bifronte da bandeira imperial. Distante três quilômetros, às margens do rio, situa-se a nova Galeria Tretyakov. Nela, descortinam-se as obras da vanguarda russa do início do século 20, a vertente mais radical do modernismo europeu, que terminou se esterilizando no realismo socialista. Lá, avistei uma jovem russa de cabelo azul admirando o modelo da Torre Tatlin. A Rússia não é um monólito sempre igual a si mesmo.

Cada um tem a sua própria Rússia, nenhuma delas menos verdadeira que a outra. A Rússia de cada um esclarece bem pouco sobre a Rússia –mas diz tudo sobre o sujeito que a inventa.

 

3 comentários:

  1. Cristina disse: "Ordem mundial baseada em quais regras, cara-pálida? A 'ordem mundial' só pode se basear em determinações de órgãos com real legitimidade internacional, não em 'regras' emitidas pela parte dominante da humanidade, i.e., o Ocidente coletivo. A tal 'ordem baseada em regras' não está na Carta das Nações Unidas e começou a ser invocada há menos de uma década".

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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