O Globo
Cultura era para ser programa de Estado, não
de governo. Porque é o que nos dá identidade
O artista já foi definido como “a antena da
raça”. Seu papel não seria apenas reelaborar o passado (e manter viva a
tradição) ou traduzir o presente (e ser o intérprete do seu tempo), mas,
principalmente, captar o que está por vir. E inventar esse futuro, seguindo sua
intuição.
Por isso incomoda tanto — e é tão perseguido
e censurado. Por isso interessa tanto — e é tão sujeito a ser cooptado.
O artista incomoda o burocrata — aquele que cultiva o “lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor”, de que fala Manuel Bandeira. Incomoda o reacionário — o “burguês funesto”, refém das “adiposidades cerebrais”, alvo do ódio de Mário de Andrade. Incomoda a ponto de não faltar gente (como no governo anterior) que, quando ouve falar em cultura, não saca o Pix, mas o revólver.
Não à toa a Lei Rouanet foi tão demonizada, e
a gestão da agenda cultural entregue a quem, de cultura, não entendia nada. O
artista desafina o coro dos contentes. Bota bepop no samba. Vai aonde o povo
está. Abre a voz e o tempo canta.
Mas o artista também faz salivar o demagogo,
o autoritário. E aí entra a outra face, a arte oficial, a soldo de um projeto
de poder. O artista com subsídios para fazer de seus dons um cavalo de Troia e
contrabandear pautas de interesse desse ou daquele grupo. Foi assim com o
realismo socialista e os filmes de propaganda nazista; está sendo com a
literatura progressista (satirizada no cinema por meio de “Ficção americana”).
As demandas woke de diversidade, equidade e inclusão reduzindo qualquer criação
artística a um comercial da Benetton. Importa mais enegrecer Machado de
Assis que o ler; cancelar Monteiro Lobato, mais que
contextualizá-lo.
E isso não mudará enquanto a educação, alma
gêmea da cultura, continuar negligenciada, e uma geração não receber os
afluentes das gerações passadas. O que leva a jovem cantora a comemorar que a
música nordestina “finalmente encantou o Brasil”, ignorando os (grandes) que a
antecederam. Ou o compositor da periferia a não ter ideia de quem sejam esses a
quem Chico Buarque reverencia ao receitar “para um coração mesquinho/ contra a
solidão agreste” Pixinguinha, Noel, Cartola, Orestes.
Na contracorrente do descaso, do desprezo ou
da militância, há os que criam uma obra ouvindo o passado, respirando o agora,
olhando adiante. Como Roberta Sá e o samba; Egberto Gismonti, que foi beber em
Villa-Lobos (antes embebedado nas cantigas populares). Como Maria
Bethânia e Mônica Salmaso — quem ouvir “Brasileirinho” e
“Caipira” terá um vislumbre do que fomos, do que somos, do que podemos ser.
Cultura era para ser programa de Estado, não
de governo. Porque é o que nos dá identidade, sensação de pertencimento. Ou, na
definição de Selma Lagerlöf, “o que subsiste quando esquecemos tudo o que
tínhamos aprendido”.
“O Brasil vem da fusão de todas as águas, de
todas as correntes culturais, da miscigenação. (...) Nossa música é a nossa
política”, proclamaram Marina Lima e Antonio Cicero, lá nos estertores da
ditadura. A cultura pede diversidade — não só étnica, de gênero, de orientação
sexual —, mas de pensamento. O que a (má) política fraturou a arte há de poder
soldar. Só assim a gente (re)faz um país.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBelíssimo artigo!
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