sábado, 30 de março de 2024

Carlos Alberto Sardenberg - Mal corrigindo

O Globo

Ministra da Saúde foi atirada numa missão que exigia outros atributos além de ser uma técnica de respeito

A ministra Nísia Trindade não está apenas submetida a uma lenta fritura. É pior. Foi jogada numa fogueira alimentada por inimigos, os suspeitos de sempre e pretensos companheiros. Uma maldade sem tamanho contra uma pessoa do bem, atirada numa missão que exigia outros atributos além de ser uma técnica de respeito.

O orçamento do Ministério da Saúde para este ano é de R$ 218 bilhões, o segundo maior da Esplanada e quase R$ 50 bi acima das despesas de 2023. As funções são certamente as mais difíceis do governo.

Na parte técnica, digamos, vão desde distribuir remédios de graça em farmácias até planejar e investir em pesquisas de alta complexidade; comprar e aplicar vacinas; prevenir desastres anunciados, como a epidemia de dengue; selecionar e adquirir medicamentos; administrar hospitais complexos; levar medicamentos e tratar dos ianomâmis; manter os programas de tratamento de aids; financiar e apoiar ações de prefeituras e governos estaduais.

Nessa parte administrativa, o ministério tem como interlocutores: a grande indústria farmacêutica; fabricantes e importadores de equipamentos e insumos; governadores, prefeitos, secretários da Saúde, médicos, enfermeiros, pessoal de apoio; o INSS; a indústria de planos e seguradoras.

Tem mais, mas fiquemos por aqui. Claro que, em parte, são negociações administrativas, mas está na cara que tem muita política aí, no atacado e no varejo.

No atacado: a distribuição de recursos para outros ministérios, governos estaduais e prefeituras. Quem recebe antes, considerando um ambiente político polarizado? Um estado governado pela oposição pode precisar mais que a administração de companheiros. Que programas precisam de mais apoio? Gastar mais com a dengue hoje ou com os ianomâmis?

No varejo: negociar com deputados e senadores a distribuição das emendas, dinheiro do Orçamento federal cujo destino é indicado pelos parlamentares, mas passa pelo crivo do ministério. De novo, um deputado do PT vale mais que um do PL, independentemente da finalidade do recurso?

Tem mais: a relação com as diversas entidades da sociedade civil ligadas à saúde, incluindo questões como aborto e liberação de drogas.

Finalmente, a nomeação das equipes: há necessariamente critérios técnicos, mas claro que os militantes dos diversos partidos, que também ganharam a eleição, têm indicações a fazer. A começar pelo presidente Lula e sua turma mais próxima.

Vai daí que a ministra Nísia Trindade precisaria combinar enorme capacidade de gerência técnico-administrativa — gente! É mais difícil do que administrar uma grande estatal — com experiência e habilidade político-partidária. E precisaria contar com apoio irrestrito do governo e dos partidos que o integram — o que certamente não é o caso.

Vamos falar francamente: não está funcionando. Tem problema em todas as áreas. É uma administração que reage atrasada. Declarou-se agora emergência nos hospitais federais do Rio. Depois de 15 meses de governo, todo mundo sabendo que a situação era caótica? Só lembrando: a emergência para os ianomâmis foi declarada em janeiro do ano passado.

O ministério está em desmonte. Troca-se um secretário aqui, outro ali, sobe um diretor, mudanças bruscas. A menos culpada nisso tudo é Nísia Trindade. Na verdade, tornou-se vítima de ataques ora sutis, ora ostensivos. A responsabilidade maior neste momento é do presidente Lula. Reclama ostensivamente da ministra — como é de seu estilo —, mas não oferece saídas. A culpa é dos outros.

E quem colocar? Entregar tal ministério para o Centrão seria capitular à pior política. Então? Uma dica, um exemplo: o melhor ministro da Saúde das últimas décadas foi José Serra, político e gestor.

O desgaste se arrasta. Lula tem dificuldade em reconhecer erros, especialmente quando cometidos com amigos. Caso da tentativa de mudar a abordagem em relação à Venezuela, mas sem admitir que nesse tempo Lula apoiou ostensivamente uma ditadura. E que Maduro continua sendo ditador.

Com pesquisas ruins, o governo Lula parece estar em algumas manobras de correção. Atrasadas e insuficientes.

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