O Globo
A ordem é entrar em modo amnésia coletiva.
Não provocar debates sobre prisões arbitrárias, luta armada...
José Murilo de Carvalho escreveu que “são os
historiadores, no presente, que constroem o passado”. Em outras palavras — e
parafraseando Cecília Meireles —, o passado só é possível reinventado. É, por
isso, uma obra aberta: cada época dispõe de informações adicionais, mais
ferramentas teóricas e — para o bem e para o mal — novas ideologias. Sai a
história dos vencedores, entra a dos vencidos — a mesma cena, com enquadramento
diferente, um recorte que privilegia um personagem em detrimento de outro.
Figurantes assumem protagonismo — o que não quer dizer que, sob mirada futura,
não possam voltar a ser nota de rodapé.
Talvez por isso o tempo que passou seja tão
imprevisível quanto o que ainda está por vir.
Nossa geração viu Jesus deixar de ser judeu (e loiro, de olhos azuis...) para se tornar um moreno revolucionário palestino e marxista avant la lettre. Viu o Descobrimento do Brasil virar invasão imperialista. O bandeirante herói da nossa infância — que se embrenhava, intrépido, mata adentro e fez o país dobrar de tamanho — se transformar em vilão escravagista. A celebrada conquista da Amazônia (“inferno verde” onde árvore boa era árvore derrubada) se revelar um desastre ambiental.
Maleável, o passado se presta a todo tipo de
fabulação (que era como os antigos chamavam, com mais propriedade, o que hoje
denominamos “narrativas”).
Sobre o Grito do Ipiranga não ter sido bem um
grito — tampouco exatamente às margens do célebre riacho —, Machado de Assis
escreveu: “Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A
lenda resume todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata
o reduz a uma cousa vaga e anônima”.
A lenda é sempre mais sedutora. Quem vê
Deodoro da Fonseca nas pinturas, embalado pelos ideais de ordem e progresso,
desembainhando a espada para derrubar o Império decadente e instaurar um regime
de mais liberdade e cidadania, talvez não saiba que o marechal, adoentado,
atravessou com dificuldade o campo em frente à sua casa, montou brevemente num
cavalo, proclamou (arfante) o novo regime, apeou e voltou para a cama. O país
continuaria com mentalidade escravista e colonial. Nas palavras de José Murilo,
“na República que não era, a cidade não tinha cidadão”. Mas teriam o mesmo
significado, hoje e naquela sexta-feira de 1889, as palavras “cidadão” e
“república”?
Estamos às vésperas do 60º aniversário do 31
de março. Tivesse Bolsonaro sido reeleito (ou melado a eleição), não faltariam
“intelectuais” dispostos a desconstruir os 21 anos de ditadura e reerguer a
fachada da Revolução Redentora que nos livrou do comunismo. Como quem está no
governo é Lula,
esperava-se que a data fosse um momento de reflexão, de relembrar os perigos da
radicalização, o valor da democracia e do respeito às instituições. Mas a ordem
é entrar em modo amnésia coletiva. Não provocar debates sobre prisões
arbitrárias, luta armada, desaparecidos, censura, tortura, direitos humanos
(“Circulando, circulando! Não tem nada para ver aqui!”). Sexagenário, o 64 de
Lula não é golpe nem revolução: é um silêncio covarde.
A História vai continuar sendo (re)construída
ao sabor tanto da inteligência dos que se dedicam a iluminá-la quanto dos
interesses de ocasião dos que preferem deixá-la nas sombras. Oscilando não só
entre a lenda e a versão anônima e vaga, mas entre o respeito à memória e o
limbo das conveniências.
O terceiro parágrafo é de uma estultice digna do Globo
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