sábado, 16 de março de 2024

Eduardo Affonso - A História e as estórias

O Globo

A ordem é entrar em modo amnésia coletiva. Não provocar debates sobre prisões arbitrárias, luta armada...

José Murilo de Carvalho escreveu que “são os historiadores, no presente, que constroem o passado”. Em outras palavras — e parafraseando Cecília Meireles —, o passado só é possível reinventado. É, por isso, uma obra aberta: cada época dispõe de informações adicionais, mais ferramentas teóricas e — para o bem e para o mal — novas ideologias. Sai a história dos vencedores, entra a dos vencidos — a mesma cena, com enquadramento diferente, um recorte que privilegia um personagem em detrimento de outro. Figurantes assumem protagonismo — o que não quer dizer que, sob mirada futura, não possam voltar a ser nota de rodapé.

Talvez por isso o tempo que passou seja tão imprevisível quanto o que ainda está por vir.

Nossa geração viu Jesus deixar de ser judeu (e loiro, de olhos azuis...) para se tornar um moreno revolucionário palestino e marxista avant la lettre. Viu o Descobrimento do Brasil virar invasão imperialista. O bandeirante herói da nossa infância — que se embrenhava, intrépido, mata adentro e fez o país dobrar de tamanho — se transformar em vilão escravagista. A celebrada conquista da Amazônia (“inferno verde” onde árvore boa era árvore derrubada) se revelar um desastre ambiental.

Maleável, o passado se presta a todo tipo de fabulação (que era como os antigos chamavam, com mais propriedade, o que hoje denominamos “narrativas”).

Sobre o Grito do Ipiranga não ter sido bem um grito — tampouco exatamente às margens do célebre riacho —, Machado de Assis escreveu: “Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resume todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma cousa vaga e anônima”.

A lenda é sempre mais sedutora. Quem vê Deodoro da Fonseca nas pinturas, embalado pelos ideais de ordem e progresso, desembainhando a espada para derrubar o Império decadente e instaurar um regime de mais liberdade e cidadania, talvez não saiba que o marechal, adoentado, atravessou com dificuldade o campo em frente à sua casa, montou brevemente num cavalo, proclamou (arfante) o novo regime, apeou e voltou para a cama. O país continuaria com mentalidade escravista e colonial. Nas palavras de José Murilo, “na República que não era, a cidade não tinha cidadão”. Mas teriam o mesmo significado, hoje e naquela sexta-feira de 1889, as palavras “cidadão” e “república”?

Estamos às vésperas do 60º aniversário do 31 de março. Tivesse Bolsonaro sido reeleito (ou melado a eleição), não faltariam “intelectuais” dispostos a desconstruir os 21 anos de ditadura e reerguer a fachada da Revolução Redentora que nos livrou do comunismo. Como quem está no governo é Lula, esperava-se que a data fosse um momento de reflexão, de relembrar os perigos da radicalização, o valor da democracia e do respeito às instituições. Mas a ordem é entrar em modo amnésia coletiva. Não provocar debates sobre prisões arbitrárias, luta armada, desaparecidos, censura, tortura, direitos humanos (“Circulando, circulando! Não tem nada para ver aqui!”). Sexagenário, o 64 de Lula não é golpe nem revolução: é um silêncio covarde.

A História vai continuar sendo (re)construída ao sabor tanto da inteligência dos que se dedicam a iluminá-la quanto dos interesses de ocasião dos que preferem deixá-la nas sombras. Oscilando não só entre a lenda e a versão anônima e vaga, mas entre o respeito à memória e o limbo das conveniências.


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