sábado, 16 de março de 2024

Pablo Ortellado - Um outro Rafael Braga

O Globo

Muitos talvez não lembrem mais, mas, há dez anos, o Brasil se mobilizou pela soltura de Rafael Braga, único condenado pela participação nos protestos de junho de 2013. Ele era um morador de rua que foi preso no dia 20, em meio a manifestações pela redução das tarifas de transporte na região central do Rio de Janeiro. Foi detido próximo à Central da Brasil com uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária e injustamente acusado de portar “coquetéis molotov” para atacar a polícia.

O caso escandalizou o país. Rafael era um morador de rua que vivia na região central e não participava do protesto. As garrafas de plástico com desinfetante e água sanitária que portava obviamente não podiam ser empregadas como coquetéis molotov. Apesar da acusação ridícula, a polícia sustentou seu entendimento, e o Ministério Público encampou a tese, mostrando como os abusos da polícia se entrelaçam com o descuido e os vieses do Judiciário, especialmente se o acusado é pobre, preto e tem condenação anterior. Em dezembro de 2013, Rafael foi condenado a cinco anos de prisão por porte ilegal de artefato incendiário.

Dez anos depois, outro morador de rua, Geraldo Filipe da Silva, foi preso no contexto de uma manifestação política. Durante os atos do 8 de Janeiro, ele, que vivia na rua, foi atraído pela movimentação na Praça dos Três Poderes e se aproximou para ver o que estava ocorrendo. Não entrou nos edifícios e não participou de qualquer depredação. Mesmo assim, foi preso em flagrante e acusado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) dos pesados crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio público tombado. Ele ficou preso por mais de dez meses e depois foi liberado com o uso de tornozeleira eletrônica. Na quinta-feira, finalmente, tornou-se o primeiro detido no 8 de Janeiro a ser inocentado, depois de a PGR mudar de opinião e o STF formar maioria para absolvê-lo.

Ao contrário do caso Rafael Braga, a Justiça desta vez se corrigiu, inocentando Geraldo. Mesmo assim, manter preso preventivamente por dez meses um homem inocente é um problema grande, especialmente quando envolve uma Corte qualificada como o STF. É também digno de nota que as organizações de direitos humanos não tenham se mobilizado para soltá-lo como fizeram com Rafael Braga em 2013-2014.

Tanto o tratamento da PGR e do STF como a indiferença das organizações de direitos humanos têm a mesma origem: o modo militante, em “defesa da democracia”, que adotaram para tratar acusados por crimes contra o Estado Democrático de Direito.

Há um entendimento, às vezes tácito, às vezes explícito, de que, para defender a democracia, foi preciso que a Justiça adotasse uma postura militante. Só que essa postura — que talvez tenha sido mesmo necessária — não se manifestou na criação de leis de proteção à democracia ou na dura perseguição aos crimes, mas em certa heterodoxia na aplicação das leis.

No artigo clássico em que apresenta o conceito de “democracia militante”, o jurista Karl Loewenstein defendia que a democracia criasse dispositivos legislativos (como criamos nossa lei em defesa do Estado Democrático de Direito) para impedir que atores maliciosos antidemocráticos — como os fascistas de então — se aproveitassem das liberdades da democracia liberal para tentar aboli-la. Só que, no Brasil de Bolsonaro, a situação foi mais complicada. Com a inação do Ministério Público, o STF teve de assumir a investigação dos crimes, misturando os papéis. Sucederam-se medidas controversas, cada vez mais heterodoxas.

A Justiça prendeu gente demais preventivamente com evidências pouco robustas. É bem possível que Geraldo da Silva não seja o único inocente entre as centenas de presos. Ela também tem dificultado o acesso da defesa dos acusados e dos investigados aos inquéritos. E, como se não bastasse, a Justiça, nas investigações de ameaças à democracia, mantém suspensas contas e perfis de redes sociais de acusados — medida que parece censura prévia.

Será que, permitindo que os investigados aleguem perseguição política, a democracia fica mesmo bem protegida?

 

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