O Globo
Muitos talvez não lembrem mais, mas, há dez
anos, o Brasil se mobilizou pela soltura de Rafael Braga, único condenado pela
participação nos protestos de junho de 2013. Ele era um morador de rua que foi
preso no dia 20, em meio a manifestações pela redução das tarifas de transporte
na região central do Rio de Janeiro. Foi detido próximo à Central da Brasil com
uma garrafa de Pinho Sol e outra de água sanitária e injustamente acusado de
portar “coquetéis molotov” para atacar a polícia.
O caso escandalizou o país. Rafael era um morador de rua que vivia na região central e não participava do protesto. As garrafas de plástico com desinfetante e água sanitária que portava obviamente não podiam ser empregadas como coquetéis molotov. Apesar da acusação ridícula, a polícia sustentou seu entendimento, e o Ministério Público encampou a tese, mostrando como os abusos da polícia se entrelaçam com o descuido e os vieses do Judiciário, especialmente se o acusado é pobre, preto e tem condenação anterior. Em dezembro de 2013, Rafael foi condenado a cinco anos de prisão por porte ilegal de artefato incendiário.
Dez anos depois, outro morador de rua,
Geraldo Filipe da Silva, foi preso no contexto de uma manifestação política.
Durante os atos do 8 de Janeiro, ele, que vivia na rua, foi atraído pela
movimentação na Praça dos Três Poderes e se aproximou para ver o que estava
ocorrendo. Não entrou nos edifícios e não participou de qualquer depredação.
Mesmo assim, foi preso em flagrante e acusado pela Procuradoria-Geral da
República (PGR)
dos pesados crimes de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado
Democrático de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano qualificado e
deterioração de patrimônio público tombado. Ele ficou preso por mais de dez
meses e depois foi liberado com o uso de tornozeleira eletrônica. Na
quinta-feira, finalmente, tornou-se o primeiro detido no 8 de Janeiro a ser
inocentado, depois de a PGR mudar de opinião e o STF formar
maioria para absolvê-lo.
Ao contrário do caso Rafael Braga, a Justiça
desta vez se corrigiu, inocentando Geraldo. Mesmo assim, manter preso
preventivamente por dez meses um homem inocente é um problema grande,
especialmente quando envolve uma Corte qualificada como o STF. É também digno
de nota que as organizações de direitos humanos não tenham se mobilizado para
soltá-lo como fizeram com Rafael Braga em 2013-2014.
Tanto o tratamento da PGR e do STF como a
indiferença das organizações de direitos humanos têm a mesma origem: o modo
militante, em “defesa da democracia”, que adotaram para tratar acusados por
crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Há um entendimento, às vezes tácito, às vezes
explícito, de que, para defender a democracia, foi preciso que a Justiça
adotasse uma postura militante. Só que essa postura — que talvez tenha sido
mesmo necessária — não se manifestou na criação de leis de proteção à
democracia ou na dura perseguição aos crimes, mas em certa heterodoxia na
aplicação das leis.
No artigo clássico em que apresenta o
conceito de “democracia militante”, o jurista Karl Loewenstein defendia que a
democracia criasse dispositivos legislativos (como criamos nossa lei em defesa
do Estado Democrático de Direito) para impedir que atores maliciosos
antidemocráticos — como os fascistas de então — se aproveitassem das liberdades
da democracia liberal para tentar aboli-la. Só que, no Brasil de Bolsonaro, a
situação foi mais complicada. Com a inação do Ministério Público, o STF teve de
assumir a investigação dos crimes, misturando os papéis. Sucederam-se medidas
controversas, cada vez mais heterodoxas.
A Justiça prendeu gente demais
preventivamente com evidências pouco robustas. É bem possível que Geraldo da
Silva não seja o único inocente entre as centenas de presos. Ela também tem
dificultado o acesso da defesa dos acusados e dos investigados aos inquéritos.
E, como se não bastasse, a Justiça, nas investigações de ameaças à democracia,
mantém suspensas contas e perfis de redes sociais de acusados — medida que
parece censura prévia.
Será que, permitindo que os investigados
aleguem perseguição política, a democracia fica mesmo bem protegida?
P e r f e i t o.
ResponderExcluirExcelente!
ResponderExcluir