Folha de S. Paulo
Flerta-se com a possibilidade do extermínio
sumário das nossas Faixas de Gaza
Li "Guerra e Paz" tardiamente,
intimidada tanto pelas mais de 1.500 páginas da obra-prima de Tolstói quanto
pelo glossário de nomes, sobrenomes e apelidos do romance.
O príncipe Nicolai Andreiévitch Bolkónski
pode aparecer como o Príncipe, ou Nicolai, ou Andreiévitch ou Bolkónski; pai de
outro príncipe, Andrei, também Bolkónski, que além de atender pelas mesmas
alcunhas do genitor, volta e meia é chamado de Nicolaiévich, filho de Nicolai.
Para não se perder no enredo, é aconselhável
ter uma tabela periódica dos personagens à mão. Uma vez vencida a dificuldade,
no entanto, "Guerra e Paz" se revela um daqueles amigos
inesquecíveis, dos quais o leitor sente saudade mesmo antes de virar a última
página.
O que a minha ignorância não contava era que, ao fim da saga, Tolstói arrematasse o livro com uma tese sobre a vontade inarredável dos povos. Segundo a teoria, Napoleão seria mero agente de uma ânsia coletiva da população de se mover para o leste, assim como a resistência de Kutuzov e a subsequente vitória de Wellington, em Waterloo, seria o contrafluxo desse impulso, em direção ao oeste.
As guinadas da história seriam causadas menos
pela ambição, estratégia ou o poder de heróis revolucionários, generais e
imperadores e mais pelo somatório dos ínfimos desejos da manada de Zé Ninguéns.
"Chegando ao infinitamente pequeno, a
Matemática, a mais exata das ciências, […] adota o novo método da totalização
das incógnitas infinitamente pequenas. […] Se o objetivo da História é o estudo
do movimento dos povos e da Humanidade, e não descrever episódios da vida de
alguns homens, ela deve […] pesquisar as leis comuns a todos os elementos de
liberdade infinitamente pequenos, iguais e indissoluvelmente ligados entre
si."
A tentativa de Tolstói de submeter a história
aos infinitesimais da matemática lhe valeu críticas de aberração determinista,
charlatanismo, farsa e fatalismo, partidas de filósofos e escritores
peso-pesado, que apesar de o admirarem como artista desprezaram-no como
pensador.
Quem sou eu para discordar de Flaubert e
Turgueniev? Mas meu catastrofismo enxerga valor na afirmação do gênio. Há
impulsos incontroláveis que nos movem e nos impelem, muitas vezes, na direção
do infortúnio.
Tolstói morreu em 1910 e não viveu as duas
grandes guerras do século 20, que elevaram ao absurdo a oscilação para leste e
oeste descrita pelo escritor.
As tensões que levaram a Europa ao
autoaniquilamento já estavam latentes no século 19. O nacionalismo, o
antissemitismo arraigado, o expansionismo, a disputa pela supremacia do
continente, o temor da Rússia, a
corrida armamentista, a Revolução Industrial, o endividamento das nações, a
desigualdade social e a insurreição da plebe.
A velha ordem, calcada no valor da terra e na
hierarquia monárquica e religiosa, feneceu e a Europa se viu ameaçada pela
instabilidade social e política, além de regida por uma economia volátil, que
desconhecia fronteiras.
A insegurança fez germinar, no estômago de
cada europeu, a necessidade de eliminar o inimigo, fosse ele o vizinho, o país
fronteiriço, o partido oposto, o miserável do gueto ou o seguidor de outro
deus. Uma sanha que, atravessado o século, encontraria em Adolf Hitler a sua
mais completa tradução.
Hoje, assim como no século 19, vivemos o fim
do mundo como o conhecemos, abatidos por um sentimento de falência e medo.
Munidos de smartphones, manifestamos nosso pânico, raiva e incerteza na nuvem,
num perpétuo estado de plebiscito que glorificou o extremismo.
Tarcísio de Freitas não posa de mito e bem
poderia ter dado uma declaração vaselina ao rebater as críticas feitas à
truculência da ação da polícia na Operação Verão, na Baixada Santista, mas não.
Depois de ressaltar o apoio que recebeu dos empresários, o governador mandou
para o raio que os parta os descontentes, arrematando com um "não estou
nem aí".
De fato, exausta e descrente de uma solução
factível para o problema crônico da miséria e da segurança pública, parte
relevante do eleitorado flerta com a possibilidade do extermínio sumário das
Faixas de Gaza do país.
Tolstói tem lá sua razão. Não são Putin,
o Hamas, Netanyahu,
Trump, Erdogan, Kim Jong-un, Noriega, Maduro, Messias, Braga
Netto, Heleno, Milei e o Chega, somos nós mesmos e a nossa velha pulsão de
morte.
O ser humano é mau,por isso estamos aqui no planeta-sofrimento chamado terra,estamos sendo educados pela dor.
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