quarta-feira, 6 de março de 2024

Fernando Exman - Trabalho por aplicativos na agenda dos três Poderes

Valor Econômico

Lula espera reconhecimento pelo esforço do governo para a criação do que chama de “nova modalidade no mundo do trabalho”

O dia 4 de março de 2024, diz o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ficará para a história como uma data “muito diferente”. Pode ser.

Ele espera que isso ocorra quando for reconhecido o esforço liderado pelo governo para a criação do que chama de “nova modalidade no mundo do trabalho”. Guardando as devidas proporções, está nos livros o discurso feito em São Januário pelo ex-presidente Getúlio Vargas em 1º de maio de 1943, ano do estabelecimento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Mas o “mundo do trabalho” era outro. E guardando as devidas proporções futebolísticas, o estádio do Vasco da Gama também era um dos maiores da América do Sul. Além disso, ainda há um longo caminho até que o trabalho por aplicativo seja definitivamente regulamentado.

Executivo, Legislativo e Judiciário tentam, por enquanto cada um a seu modo, atacar a questão individualmente. Há espaço para mais articulação entre os Poderes, para que o resultado seja o mais positivo possível.

Na semana passada, o STF admitiu, por unanimidade, o amplo alcance da discussão sobre a existência ou não de vínculo de emprego entre motoristas de aplicativo e as plataformas que prestam serviços. Ao concluírem que há repercussão geral, o futuro entendimento do STF balizará todas as decisões da Justiça a respeito. Ficou claro para os agentes do setor que o Supremo decidiu dar um recado para as instâncias inferiores de que é preciso dar um fim às incontáveis reclamações de casos trabalhistas desse tipo.

O Supremo pode, desta forma, dizer o que essa relação de trabalho “não é”. Ainda assim, será preciso que se estabeleça as características dessa relação. Ou, em outras palavras, “o que ela é”. E é aí que entram os outros dois Poderes.

Menos de 72 horas separaram a decisão do STF e o anúncio do Poder Executivo. Após seguidos meses de negociações - e impasse com os entregadores que usam as plataformas digitais para arrumar trabalho - o governo decidiu levar adiante a proposta que abarca os motoristas de transporte individual. Limitou-se o escopo do projeto, mas a opção foi por destravar o debate e torná-lo público.

Houve tom de campanha, até porque o evento realizado no Palácio do Planalto foi uma forma de Lula demonstrar que não havia abandonado uma das promessas feitas durante a disputa de 2022. Mas, por outro lado, o presidente reconheceu que os próprios trabalhadores desejam manter uma relação diferente da tradicional.

Os especialistas chamam de “Gig Economy”. Suas características seriam justamente a ausência de vínculo formal na relação de trabalho, a possibilidade de prestação de serviços para vários demandantes e jornadas esporádicas.

Lula já a comparou a trabalho análogo à escravidão. Ao longo do tempo, é verdade, foi calibrando o discurso. Mas ainda não conseguiu se conectar totalmente com essa parcela da sociedade.

Segundo pesquisa Datafolha realizada no ano passado, aproximadamente quatro entre cada dez desses trabalhadores se identificam como de direita, a mesma quantidade se diz de centro e dois em cada dez como de esquerda.

Um número considerável desses trabalhadores não se vê parte de uma “categoria”. Prefere se reunir em uma associação. Lula insiste no modelo sindical: o projeto de lei complementar enviado para o Congresso coloca o sindicato como representante da categoria profissional “motorista de aplicativo de veículo de quatro rodas”.

Será preciso, também, encontrar um modelo em que os trabalhadores considerem a contribuição à Previdência menos burocrática e financeiramente mais atrativa. Dados em posse do governo apontam que existe uma desigualdade regional na contribuição previdenciária individual desse grupo. O índice é maior nas regiões Sul e Sudeste, enquanto no Norte e no Nordeste é muito menor.

Os trabalhadores querem flexibilidade de jornada, pois muitos possuem outras fontes de renda. Em contrapartida, lutam por bandeiras pelas quais os sindicatos tradicionais não estão acostumados a lidar, como mais transparência no funcionamento dos aplicativos e mais explicações dos motivos dos eventuais bloqueios realizados pelas plataformas.

Diante de incertezas quanto à pauta da Câmara, o Executivo tenta ocupar espaço ao enviar o projeto em regime de urgência. Naquela Casa, no entanto, a informação é que o presidente Arthur Lira (PP-AL) ainda nem pensou em quem indicará para relatá-lo.

Já há mais de cem propostas sobre o assunto tramitando na Câmara e várias outras no Senado. E expectativa é que, no mínimo, os parlamentares tentem emendá-lo para incluir outras categorias. Deputados já começam a se pronunciar a favor da extensão das regras para os entregadores, mesmo que não tenha ocorrido o acordo no âmbito do grupo de trabalho criado pelo governo. Esse é um grupo mais exposto e que demanda mais responsabilização das empresas, além de ter menos capacidade financeira para abrir mão de parte da remuneração para contribuir com a Previdência.

Não está claro se o mesmo ocorrerá com trabalhadores que prestam serviços domésticos ou de reparos, atividades também abarcadas pelos aplicativos. A polarização do debate político deve contaminar a discussão, sobretudo em ano eleitoral.

 

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