Apesar de toda dificuldade, o êxito na segurança pública seria um marco em toda a história da redemocratização
A
elucidação do assassinato de Marielle Franco cria uma oportunidade para o Rio
e, por meio dela, uma experiência importante para todo o País. É possível
abalar o edifício viciado da segurança pública, desfazendo os elos entre
polícia, milícia e estrutura política.
Aliás,
o próprio assassinato é um exemplo emblemático, pois envolveu, na linha de
frente, um deputado, um conselheiro do Tribunal de Contas e o chefe da polícia.
Há bastante tempo se amadureceu a ideia de que sozinho, dadas as características da trama criminosa, o Rio de Janeiro não conseguiria resolver o problema. Era preciso uma ajuda de fora, como de fato aconteceu com o caso Marielle. O ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann é um defensor dessa tese. Mas, numa entrevista após a elucidação do crime, alinhou as dificuldades que o governo federal tem para cumprir um papel de liderança neste campo, não só no Rio, como em outros Estados.
O
primeiro grande problema é falta de previsão constitucional para essa tarefa.
Não há nada que obrigue o governo federal a cuidar da segurança pública. O
segundo grande obstáculo são as verbas orçamentárias destinadas principalmente
aos Estados. Finalmente, o número de efetivos policiais nas mãos do governo
federal é muito pequeno diante das eventuais demandas estaduais de apoio.
Esses
limites, por outro lado, acabam agravando a crise no Rio, e o próprio Jungmann
lembrou como o Estado estava naturalizando a ausência de uma autoridade
policial de respeito. Citou o caso dos médicos recentemente assassinados na
Barra da Tijuca. Eles estavam tomando uma cerveja depois de um dia de congresso
e foram fuzilados por criminosos que os confundiram com milicianos rivais. O
assassinato foi punido, alguns dias depois, pelo próprio crime organizado. E
tudo foi visto com normalidade, como, aliás, são vistas as ações dessa natureza
em muitas comunidades ocupadas pelo tráfico ou pela milícia.
O
entrelaçamento entre o crime e a política não é difícil de compreender. Mais da
metade do território urbano é ocupada por grupos armados, que controlam a
entrada e a saída de candidatos durante as eleições. O crime organizado tem
influência sobre o eleitorado e consegue, com isso, eleger aqueles que o
protegem. Não há uma verdadeira democracia, porque muito candidatos não podem
se comunicar diretamente com o povo.
Esse
processo contamina também as eleições majoritárias. Muitos candidatos se aliam
aos milicianos para se tornarem competitivos. Aliás, os próprios governadores
eleitos no Rio acabam passando pela prisão.
Atualmente,
a situação se complicou a tal ponto que o Estado do Rio de Janeiro é talvez o
único do Brasil onde o secretário de Segurança é indicado pelos deputados. A
influência política começa pelo topo e se espalha pela base da pirâmide.
A
situação já foi descrita com a expressão septicemia, na qual todo o organismo
institucional é contaminado, inclusive, em certa medida, o Judiciário, em tese
o órgão controlador.
Como
sair dessa? O crime organizado ganhou uma dimensão nacional e até
internacional, como é o caso na Amazônia.
No
curto prazo, o horizonte é promissor no Rio de Janeiro, porque o assassino de
Marielle confessou mais seis crimes e eles também serão elucidados. Pode ser
que isso tenha repercussão no próprio mercado de matadores profissionais,
constituído pelo jogo do bicho e por milícias.
Um
trabalho mais amplo dependerá, certamente, de uma força-tarefa. Recentemente,
uma série intitulada Nova York Contra a Máfia mostra como o FBI conseguiu
alterar radicalmente o sistema criminoso na cidade. Medellín é outro exemplo de
melhoria numa situação terrível, dominada por Pablo Escobar e os famosos
matadores, os sicários.
O
Brasil coloca problemas especiais porque a crise se alastrou por outros
Estados, como Bahia e Ceará, e também pela imensidão da Amazônia, onde o
garimpo ilegal e o tráfico de drogas se deslocam com facilidade pelo ar e pelos
rios.
O
governo federal tem a escolha de dar esta contribuição importante mas ainda
limitada no Rio ou formular um trabalho mais amplo.
Se
a escolha for por ações limitadas a certas áreas, a sobrevivência dos Yanomamis
em Roraima, por exemplo, é outro desafio muito complicado, sobretudo pelos
efetivos e recursos materiais que demanda numa vasta área, com os rios, fontes
de proteína, contaminados pelo mercúrio.
De
qualquer forma, o Ministério da Justiça, que é o responsável pelo tema, pode
desempenhar um papel essencial em desatar estes nós e criar uma nova relação
entre Brasília e os Estados neste campo.
Apesar
de toda dificuldade, o êxito seria um marco em toda a história da
redemocratização e poderia representar uma grande novidade também na série de
governos de centro-esquerda no Brasil, sempre acossados por um perspectiva de
direita, sedutora em termos de compreensão imediata, mas sem compromisso com o
Estado de Direito.
Também
não é uma tarefa para o governo realizar solitariamente. Ela tem uma dimensão
parlamentar e social que pode atenuar o seu fardo.
Verdade.
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