O Globo
Quantos episódios não estão artificialmente
politizados? Quantas amizades não se romperam?
Num artigo sobre pesquisas, mencionei a
polarização política como dado constante e crescente no país. Apenas esbocei a
necessidade de atenuá-la. É preciso reconhecer que a polarização de certa forma
interessa a algumas forças políticas, mas não só a elas. O país rigidamente
dividido cria uma espécie de zona de conforto onde, não importa o que se
defenda, sempre será bem-visto quem favorecer um dos lados. Criar, portanto,
estreitas superfícies de contato em que se possa desenvolver algo em comum é
muito difícil e, além do mais, desperta a suspeita de que se está sutilmente
trabalhando para um dos lados.
No entanto existe uma infinidade de circunstâncias em que uma espécie de unidade nacional aumenta o potencial do país. Não me refiro apenas aos possíveis inimigos externos que inspirem uma defesa nacional. Parto de situações mais simples, como a epidemia de dengue. No estágio atual, não se pode contar principalmente com vacina. É preciso limpar as casas e desenvolver iniciativas de vizinhança que localizem problemas nos terrenos baldios, residências abandonadas. É preciso um nível mínimo de convivência respeitosa para realizar um trabalho assim.
Da mesma forma, iniciativas de vizinhança
podem aumentar a segurança de suas áreas. Não proponho que substituam as
polícias, nem que criem comitês de defesa ou coisa parecida. Discussões
permanentes, acordos, medidas comuns, troca de informações, tudo isso cria uma
cultura que torna mais eficaz e também monitorado o trabalho policial.
Lembro-me de estar viajando de ônibus em
Israel e, subitamente, o motorista parar e sair correndo para apagar um
incêndio na margem da estrada. Ele se sentia responsável, achava que era sua
tarefa iniciar o combate ao fogo.
Outro aspecto que me parece importante é a
preparação das comunidades para eventos extremos oriundos do aquecimento
global. É preciso que estejam treinados, que conheçam os moradores vulneráveis,
que armazenem pequenos barcos, enfim, algo parecido com o que fazem os
japoneses. Isso também torna-se possível quando há um nível razoável de
convivência.
Tenho uma querida amiga que é petista. Suas
bananeiras dão frutos que caem no quintal da vizinha. Elas brigam na Justiça
por isso, por causa de bananas. A amiga diz que é coisa de bolsonarista;
provavelmente a vizinha responde que petistas não podam suas árvores. A verdade
é que tanto Bolsonaro como o PT nada
têm a ver com isso, não há o mínimo vestígio em seus programas sobre a evolução
dos cachos de bananas.
Quantos episódios não estão artificialmente
politizados? Quantas amizades não se romperam, quantas famílias não se falam
com medo de a política irromper na mesa de jantar?
Parece quixotesco remar contra a polarização
excessiva. É assim nos Estados
Unidos, está ficando assim na Europa. Acontece que, nos países do
Norte, existe um fator ausente aqui: os grandes fluxos migratórios. Os
estrangeiros passam a ser uma espécie de linha divisória, despertando o medo de
perda de emprego, violência urbana.
O Chega cresceu em Portugal com discurso
contra imigrantes e contra a corrupção. Este último fator tem peso na
polarização brasileira, mas é muito mais fácil de ser superado, a partir de um
denominador comum: a tese aceita por todos do aumento da transparência.
As diferenças políticas na sociedade
brasileira, como em todas as outras democracias, continuarão a existir. Mas é
preciso determinar um ponto em que passam a ser prejudiciais aos dois lados e,
consequentemente, ao próprio país.
Não é um caminho fácil insistir nessa tecla.
Mas tenho algumas razões para supor que isso é possível, por meio da
repercussão do meu próprio trabalho. Sempre que tentei, de uma certa forma, deu
certo.
Será?
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