sexta-feira, 1 de março de 2024

João Paulo Charleaux - Civis não são alvos legítimos, mas morrem mais que combatentes em Gaza

Folha de S. Paulo

Viver perto de um quartel do Exército ou de um esconderijo de um grupo armado não torna uma pessoa menos civil

Quando se trata de entender as leis da guerra, uma linha simples pode ser traçada: civis não são alvos legítimos. Eles devem ser poupados a todo custo dos efeitos das hostilidades. Muitas vezes essa regra basta para identificar o que é certo ou errado, o que é crime de guerra ou não, do ponto de vista do direito internacional.

É fácil identificar os civis: pessoas que não portam armas e não participam ativamente das hostilidades. O fato de alguém viver perto de um quartel do Exército ou de um esconderijo de um grupo armado não faz dessa pessoa alguém menos civil ou menos protegido por essa norma. Tampouco o fato de ser parente de um soldado ou de um guerrilheiro. Nem mesmo as opiniões políticas de uma pessoa tiram dela a condição de civil.

Um palestino pode levantar uma bandeira do Hamas em Gaza sem que isso diminua em nada a proteção dele como civil. Da mesma maneira, um colono judeu que construa sua casa em território palestino ocupado não deixa de ser civil. Com essas ações, essas pessoas podem estar incorrendo até mesmo em crimes –como apologia de um grupo proscrito ou anexação ilegal de um território–, mas não deixam de ser civis por isso e, como tais, não podem ser consideradas alvos legítimos na guerra.

Civis são normalmente referidos como mulheres e crianças, mas podem também ser homens. O grande grupo dos civis inclui todos os que não estão engajados ativamente nas hostilidades, aqueles que não são parte do esforço de guerra, independentemente de suas opiniões e posições políticas em relação a um lado ou a outro da disputa. A mesma proteção se aplica a seus bens e à infraestrutura indispensável a suas vidas.

Do lado oposto ao dos civis ficam os combatentes, que são os que portam armas abertamente e se engajam nas operações, seja do lado de uma Força Armada regular, como é o caso das chamadas Forças de Defesa de Israel, seja do lado de um grupo armado organizado, como o Hamas.

No caso dos Exércitos regulares, é mais fácil identificar um combatente, pois eles portam uniformes e insígnias, fardas e patentes, enquanto os membros dos grupos armados evitam identificar-se visualmente como tais. O motivo é prático: as forças de Israel têm enorme superioridade militar e projetam visualmente sua presença e seu poderio como forma de intimidar e dissuadir o inimigo, além de ter no uniforme e na heráldica um elemento de coesão interna, hierarquia e espírito de corpo.

Do lado do Hamas, assumir abertamente a identidade visual de combatente é, na maioria das vezes, colar em si mesmo um alvo, facilmente visível por um inimigo que conta com modernos meios de observação, como satélites e drones com câmeras capazes de esquadrinhar cada quadra de Gaza, mesmo a muitos quilômetros de altura.

Israel alega que os membros do Hamas se misturam aos civis deliberadamente. Usar civis como escudo humano é, de fato, proibido. Mas o Hamas responde dizendo que nem sequer é possível as pessoas se separarem umas das outras num dos lugares mais densamente povoados do mundo.

Seja como for, essa guerra não acontece na selva, e nada desobriga um beligerante de obedecer ao princípio da distinção entre civis e combatentes, por mais difícil que essa diferenciação possa chegar a ser numa zona urbana populosa. Então, quando Israel ataca Gaza, deve usar meios e métodos que permitam que suas forças matem os combatentes do Hamas sem matar os civis palestinos. Do lado oposto, o Hamas não pode fazer uma incursão pelo território israelense matando civis pelo caminho.

Há, no entanto, dois poréns: civis não são alvos, mas podem sofrer danos colaterais de ações militares legais. A margem para isso, no entanto, é muito mais estreita e difícil de justificar do que as forças israelenses tentam fazer parecer em Gaza. Outra exceção: combatentes são alvos legítimos, é verdade, mas deixam de ser quando estão feridos, enfermos, náufragos, rendidos ou capturados. Quando fora de combate, devem ter suas vidas poupadas e precisam ser tratados com dignidade. Estão protegidos pelo direito contra execuções sumárias, torturas e tratamentos humilhantes e degradantes.

Embora a diferenciação entre civis e combatentes seja a espinha dorsal do direito da guerra, não existia uma norma específica sobre essa questão até 1949, quando foi adotada a Quarta Convenção de Genebra. Nos 85 anos que separam a adoção da Primeira Convenção de Genebra, em 1864, da Quarta Convenção, após a Segunda Guerra, todos os textos adotados versavam apenas sobre a proteção dos próprios combatentes, na qualidade de enfermos e feridos, náufragos e prisioneiros de guerra.

Os civis foram os últimos a contar com uma convenção específica, fruto do Holocausto sofrido pelos judeus e dos bombardeios massivos sobre vastas áreas civis em cidades europeias e japonesas – bombardeios esses que o próprio primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, evoca para justificar muitas de suas ações em Gaza agora.

 

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