Folha de S. Paulo
Viver perto de um quartel do Exército ou de
um esconderijo de um grupo armado não torna uma pessoa menos civil
Quando se trata de entender as leis da
guerra, uma linha simples pode ser traçada: civis
não são alvos legítimos. Eles devem ser poupados a todo custo dos efeitos
das hostilidades. Muitas vezes essa regra basta para identificar o que é certo
ou errado, o que é crime
de guerra ou não, do ponto de vista do direito
internacional.
É fácil identificar os civis: pessoas que não
portam armas e não participam ativamente das hostilidades. O fato de alguém
viver perto de um quartel do Exército ou de um esconderijo de um grupo armado
não faz dessa pessoa alguém menos civil ou menos protegido por essa norma.
Tampouco o fato de ser parente de um soldado ou de um guerrilheiro. Nem mesmo
as opiniões políticas de uma pessoa tiram dela a condição de civil.
Um palestino pode levantar uma bandeira do Hamas em Gaza sem que isso diminua em nada a proteção dele como civil. Da mesma maneira, um colono judeu que construa sua casa em território palestino ocupado não deixa de ser civil. Com essas ações, essas pessoas podem estar incorrendo até mesmo em crimes –como apologia de um grupo proscrito ou anexação ilegal de um território–, mas não deixam de ser civis por isso e, como tais, não podem ser consideradas alvos legítimos na guerra.
Civis são normalmente referidos como mulheres
e crianças, mas podem também ser homens. O grande grupo dos civis inclui todos
os que não estão engajados ativamente nas hostilidades, aqueles que não são
parte do esforço de guerra, independentemente de suas opiniões e posições
políticas em relação a um lado ou a outro da disputa. A mesma proteção se
aplica a seus bens e à infraestrutura indispensável a suas vidas.
Do lado oposto ao dos civis ficam os
combatentes, que são os que portam armas abertamente e se engajam nas
operações, seja do lado de uma Força Armada regular, como é o caso das chamadas
Forças de Defesa de Israel, seja do lado de um grupo armado organizado, como o
Hamas.
No caso dos Exércitos regulares, é mais fácil
identificar um combatente, pois eles portam uniformes e insígnias, fardas e
patentes, enquanto os membros dos grupos armados evitam identificar-se
visualmente como tais. O motivo é prático: as forças de Israel têm enorme
superioridade militar e projetam visualmente sua presença e seu poderio como
forma de intimidar e dissuadir o inimigo, além de ter no uniforme e na
heráldica um elemento de coesão interna, hierarquia e espírito de corpo.
Do lado do Hamas, assumir abertamente a
identidade visual de combatente é, na maioria das vezes, colar em si mesmo um
alvo, facilmente visível por um inimigo que conta com modernos meios de
observação, como satélites e drones com câmeras capazes de esquadrinhar cada
quadra de Gaza, mesmo a muitos quilômetros de altura.
Israel alega que os membros do Hamas se
misturam aos civis deliberadamente. Usar civis como escudo humano é, de fato,
proibido. Mas o Hamas responde dizendo que nem sequer é possível as pessoas se
separarem umas das outras num dos lugares mais densamente povoados do mundo.
Seja como for, essa guerra não acontece na
selva, e nada desobriga um beligerante de obedecer ao princípio da distinção
entre civis e combatentes, por mais difícil que essa diferenciação possa chegar
a ser numa zona urbana populosa. Então, quando Israel
ataca Gaza, deve usar meios e métodos que permitam que suas forças matem os
combatentes do Hamas sem matar os civis palestinos. Do lado oposto, o Hamas não
pode fazer uma incursão
pelo território israelense matando civis pelo caminho.
Há, no entanto, dois poréns: civis não são
alvos, mas podem sofrer danos colaterais de ações militares legais. A margem
para isso, no entanto, é muito mais estreita e difícil de justificar do que as
forças israelenses tentam fazer parecer em Gaza. Outra exceção: combatentes são
alvos legítimos, é verdade, mas deixam de ser quando estão feridos, enfermos,
náufragos, rendidos ou capturados. Quando fora de combate, devem ter suas vidas
poupadas e precisam ser tratados com dignidade. Estão protegidos pelo direito
contra execuções sumárias, torturas e tratamentos humilhantes e degradantes.
Embora a diferenciação entre civis e
combatentes seja a espinha dorsal do direito da guerra, não existia uma norma
específica sobre essa questão até 1949, quando foi adotada a Quarta Convenção
de Genebra. Nos 85 anos que separam a adoção da Primeira Convenção de Genebra,
em 1864, da Quarta Convenção, após a Segunda
Guerra, todos os textos adotados versavam apenas sobre a proteção dos
próprios combatentes, na qualidade de enfermos e feridos, náufragos e
prisioneiros de guerra.
Os civis foram os últimos a contar com uma
convenção específica, fruto do Holocausto sofrido
pelos judeus e dos bombardeios massivos sobre vastas áreas civis em cidades
europeias e japonesas – bombardeios esses que o próprio primeiro-ministro
israelense, Binyamin
Netanyahu, evoca para justificar muitas de suas ações em Gaza agora.
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