quinta-feira, 28 de março de 2024

José de Souza Martins* - Lobato no país do atraso

Valor Econômico

O escritor paulista foi educado na tradição conservadora brasileira, a mesma que concebeu e viabilizou a abolição da escravatura em 1888

Manifestações preconceituosas contra a obra e a pessoa de Monteiro Lobato mostram que o grande escritor se tornou bode expiatório da ignorância brasileira e das frustrações sociais que por meio dela se expressam.

Em matéria minuciosa em “Opera Mundi”, Duda Blumer narra debate ocorrido na Unicamp há poucas semanas, no Instituto de Estudos da Linguagem, sobre a pergunta “O IEL deve cancelar Lobato?”.

Esclareceu o diretor da instituição, professor Alan Pinheiro da Silva, que se tratava de “provocação” para suscitar uma troca de ideias em torno das implicações de um incidente lá ocorrido. Um setor do IEL, o Cedae abriga uma rica coleção de obras de arte e textos de autoria de Lobato, que lhe foram doados pela família do autor. Numa exposição dessas obras alguém rabiscara por cima do pôster: “Racista”.

Lobato foi artista plástico, sua primeira opção, antes daquela de ser advogado por imposição do avô, fazendeiro de café. Conformado, mas não vencido, ele continuou a pintar, autor de uma coleção de belas aquarelas e de pinturas.

É impossível ler o Monteiro Lobato dos livros sem ver o Monteiro Lobato das obras de arte. Nelas, eu prestaria atenção nas porteiras, lugar de referência do saci-pererê, um ente de demarcações simbólicas, de origem indígena, enegrecido no século XVIII com a difusão da escravidão africana em São Paulo, segundo o antropólogo Renato Queiroz. Chutar ideologicamente é fácil, difícil é pesquisar cientificamente um tema como esse. No mundo do conhecimento, quem chuta é apenas instrumento da ignorância estrutural, que é a nossa.

A acusação de racista contra o escritor paulista não é de agora. O próprio governo federal de certa época, patrono de edições de seus livros e distribuição nas escolas, aceitou que havia racismo na obra de Lobato. Os críticos oscilaram entre acrescentar aos livros um texto explicando a obra do autor em relação ao tema e a própria reescrita dos trechos controversos. Em qualquer caso, um desrespeito.

Dúvidas sobre o modo de mutilar a obra lobatiana e cercear o que é nela um modo de pensar e de expressar a realidade social, indicam a verdadeira questão, no que Antonio Candido define como necessidade expressional da sociedade de uma época. O problema não é a obra literária de Monteiro Lobato, mas a insuficiência intelectual de leitores intolerantes. Não é racismo do autor, mas preconceito de leitor.

A cultura cotidiana brasileira é historicamente preconceituosa e intolerante. As objeções ao que Lobato escreveu vêm do atraso social que ele desafia. Vêm de nossa ignorância estrutural e não de um racismo estrutural.

O debate da Unicamp é do maior interesse, na medida em que expôs um sensato discernimento de participantes, ainda que em contraponto com manifestações de bloqueios para compreensão das determinações sociais que dão sentido às ideias de uma época.

Lobato nunca foi racista. Foi educado na tradição conservadora brasileira, a mesma que concebeu e viabilizou a abolição da escravatura em 1888. Mesmo em suas obras de arte é notória a referência ao primado explicativo da concepção conservadora de ordem. O que já ficara evidente no artigo sobre a exposição das pinturas de Anita Malfatti, de 1917, na dúvida que expressou; “paranoia ou mistificação?”. No fundo, uma definição romântica de arte para dizer o que o artista gostaria que o mundo fosse, de perfeição, e a recusa daquilo que o mundo é: incoerência, irracionalidade, desordem, incerteza.

Os dilemas de Lobato nos dizem que ele era uma dupla pessoa. Nas pinturas, expressa-se o Lobato romântico, nas caricaturas, o Lobato crítico e realista. Na literatura infantil, o Lobato da crua realidade em que os seres humanos se definem pelo que era o Brasil da época. Submetida, porém, ao juízo crítico da criança e ao discernimento de sua inteligência para reconhecer que Tia Nastácia personificava as contradições do Brasil de então. Não para que os adultos desconhecedores das minúcias críticas da escrita decidam o que o autor tem o direito de dizer. Mas o que a criança leitora, sensível, tem o direito de compreender. A matéria-prima de Lobato não é o racismo dos intolerantes, mas a sensibilidade crítica da lucidez infantil.

Tia Nastácia existiu. Ela e o marido, pretos ambos, trabalharam para Lobato em Areias (SP), quando ele foi ali promotor. Casado com Purezinha, quando retornaram a Taubaté, levou-os consigo, contratados para continuar a seu serviço. Ela, grande contadora de histórias da cultura da roça, para ser babá de seu filho. Os pretos e os personagens de Lobato inventados por essa mulher sábia, que não era racista. Ele por ela usado para narrar conceitos e preconceitos do imaginário da vítima.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).

 

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