Valor Econômico
O uso do retrato fotográfico como prova de
identidade, primeira referência para confirmar a cor na matrícula, tem origem
suspeitíssima
Terminados os vestibulares, especialmente nas
universidades públicas, e conhecidos os resultados, os que alegaram diferença
racial ou social para lograr preferência na ocupação das vagas a eles
reservadas foram às matrículas. Chegara o momento de apresentar a prova da
diferença.
Quem se declarou preto e o é à luz da mera verificação visual não teve dificuldade para ter sua declaração confirmada. Não surgiram problemas com os brancos. Se originários de escola pública também têm sua cota de favorecimento, no pressuposto falso de que preto é pobre e branco é rico, de que escola pública é de pobre e escola particular é de rico. Um jogo de suposições sem fundamento objetivo.
Surgiram problemas com os pardos, o maior
grupo de cor autodeclarada no censo de 2022 - 45,3%. Acima do número de brancos
e muito acima do de pretos (10,2%). As objeções ganharam visibilidade com as
notícias de recusa de reconhecimento da declaração em relação a dois aprovados,
um para a Faculdade de Medicina e outro para a de Direito na USP. A Justiça
acolheu recurso do aprovado em direito e teve a vaga confirmada. Na medicina,
preferiu dar prazo de 5 dias para a confirmação da vaga.
O uso do retrato fotográfico como prova de
identidade, primeira referência para confirmar a cor na matrícula, tem origem
suspeitíssima. Nasceu na Europa com a própria fotografia, também no Brasil,
como recurso de controle social e de repressão. Foi para fazer triagem policial
das classes sociais perigosas, como eram chamadas, com o surgimento da
sociedade capitalista, que é a sociedade de classes e classes que não existiam
antes. Na sociedade pré-capitalista, os trabalhadores eram os pobres e sobre
eles havia formas bem objetivas de controle social e repressão.
As dúvidas quanto à eficácia do retrato
fotográfico como prova de identidade, nas ocorrências de agora em relação ao
direito às cotas nas universidades, mostra que o suspeito não é o fotografado,
mas a fotografia. Por mais fidedigna que pareça, nunca retrata as diferentes
pessoas que cada um é.
As universidades passaram a adotar a
verificação da cor identitária por meio das bancas de heteroidentificação,
bancas de 5 membros, o que quer que isso queira dizer, desde que o STF
reconheceu sua constitucionalidade em 2017. Mas essas bancas são para tirar
dúvida em relação a julgamentos de senso comum.
Numa universidade como a USP, que neste ano
teve 8 mil vagas no vestibular, um número enorme de docentes teria que
interromper o trabalho de pesquisa para atender às exigências de uma
verificação plena.
A criação dessas bancas tem sido apoiada
pelos cotistas como meio que, no fundo, legitima o direito reconhecido de
evitar injustiças sociais. Especialmente numa sociedade em que os critérios de
justiça social estão quase sempre sob suspeita, no nosso falso liberalismo de
oportunidades iguais para os diferentes.
Em decorrência das dúvidas e problemas
relacionados com os pardos, um deputado estadual preto requereu a convocação do
reitor para explicar os fatos, numa alusão ao boato de um suposto “tribunal
racial” na USP.
Nela, até o momento, 1.606 candidatos foram
analisados, 1.387 foram aprovados, 12% foram considerados não aderentes à
política de cotas e 2% não compareceram às oitivas. A autodeclaração da cor
favorece a fraude, como é sabido, embora a imensa maioria dos declarantes seja
comprovadamente honesta ao fazê-lo.
Isso não impede que se tente somar pretos e
pardos para obter cotas em favor de um dos grupos em prejuízo do outro. Esse
problema foi levantado por um Movimento dos Pardos, do Norte do Brasil, quando
se apresentou como “amico curiae” perante o STF no julgamento da ação sobre a
constitucionalidade das cotas na Universidade de Brasília.
Para eles, com razão, pardo é pardo, isto é,
descendente de índio e não mulato. Está lá na carta de Pero Vaz de Caminha, de
abril de 1500, poucas horas após a descoberta do Brasil: “Eles são pardos, diz
ele ao Rei para descrever os indígenas”.
As universidades não se defenderam
apropriadamente com critérios da ciência contra a pressão que fundiu pretos e
pardos para dar legitimidade à suposição ideológica de que os descendentes de
pretos são a maioria do povo brasileiro. Pode-se dizer com certeza que a
maioria do povo brasileiro é apenas não branca, o que é muito diferente.
É inútil levar a questão para os tribunais e
as comissões de inquérito. A questão se resolverá apenas com uma grande reforma
no ensino básico e médio, pelo tempo integral, melhora na seleção e salários
dos docentes e estímulo ao aprendizado e à leitura em nome de uma escola de
formação das novas gerações e não apenas de informação superficial.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre
outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora
Unesp, São Paulo, 2023).
Perfeito.
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