sexta-feira, 15 de março de 2024

Maria Cristina Fernandes - A década do investimento empoçado

Valor Econômico

Dez anos depois de deflagrada a operação Lava Jato, os investimentos em infraestrutura custam a deslanchar e o aperto fiscal volta a pressionar o plano estratégico da Petrobras

O PAC, maior programa de investimentos do governo federal, está estimado em R$ 61 bilhões em 2024, enquanto as emendas parlamentares somarão R$ 53 bilhões. Esta “paridade de armas” não é o único, mas é um balanço possível da Lava Jato.

As sucessivas crises políticas nesses dez anos desde o início da operação permitiram ao Legislativo emparedar o presidente de plantão e dele arrancar a impositividade, primeiro para as emendas individuais (2015) e depois para as de bancada (2020).

Saem as grandes empreiteiras e entram empresas menores que oferecem seu CNPJ para o repasse dos recursos das emendas, sem transparência e sem constrangimentos licitatórios. Trata-se de um novo “modelo de negócios” que a procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo Élida Graziane vê como a principal consequência da pulverização dos investimentos públicos nas emendas parlamentares.

Se, por um lado, o investimento decorrente das emendas se espraia por pequenas empreiteiras que executam obras mais dificilmente rastreáveis pelos órgãos de fiscalização, aqueles decorrentes do PAC ainda patinam. Vide o anúncio de uma primeira etapa do programa, de R$ 23 bilhões, voltada para investimentos municipais (unidades básicas de saúde, creches, ambulâncias do Samu).

Com pequenas obras ora arregimentadas pelas emendas parlamentares, ora pelo orçamento do governo, os espaços urbanos vão sendo ocupados por equipamentos necessários, mas insuficientes. Sem grandes investimentos em linhas de metrô, anéis viários ou projetos de transição energética, as cidades vão se transformando em vitrines da asfixia do investimento público.

A meta anunciada de se chegar em 2026 com um PAC de R$ 1,4 trilhão, 60% do qual destinado a transportes e energia, parece longe. A tentativa de fazê-lo deslanchar com a ajuda da Petrobras está por trás da recente queda de braço em torno da distribuição de dividendos extraordinários da empresa.

Entre seus conselheiros, o plano estratégico da Petrobras é tratado como parte da tensão entre o ministro da Casa Civil e condutor do PAC, Rui Costa, e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que ainda persegue o déficit zero. A ver como a estatal açambarcaria, novamente, essa missão depois das reformas de governança pós-Lava Jato.

Essas reformas decorreram da nova Lei das Estatais, parte da qual foi modificada pelo Supremo Tribunal Federal, e do acordo firmado com o Departamento de Justiça dos EUA.

Os acordos com o DoJ são um dos capítulos mais polêmicos dos dez anos da Lava Jato. Tratados pelo PT como “conspiração”, esses acordos receberam de Maria Paula Bertran e Maria Virgínia Mesquita Nasser, em “Previsível, mas problemático: o papel dos EUA na Lava Jato, por força da Foreign Corrupt Practices Act” (USP, 2024), uma nova leitura.

O acordo teve por base a lei americana de repressão à corrupção no exterior, Foreign Corrupt Practices Act. Promulgada em 1977, em resposta aos escândalos de suborno internacional do governo Richard Nixon, a FCPA permite a responsabilização de empresas e indivíduos por atos de corrupção fora dos Estados Unidos.

No livro, as autoras argumentam que a Petrobras era um alvo previsível para o acordo de 2018 com o DoJ, não por “conspiração”, mas pela aplicação usual da FPCA na seleção de casos que promovam o saneamento de mercados estratégicos. A tese, embora polêmica, diz o professor da faculdade de direito da USP e autor da apresentação do livro, Floriano de Azevedo Marques, estaria demonstrada de “forma robusta”.

Para demonstrar sua tese, as autoras recorrem à incidência da lei sobre a indústria de óleo e gás. O setor lidera o número de casos da FPCA, segundo índice da faculdade de direito da Universidade de Stanford. São 92 casos, entre 1977 e 2021. Entre os dez maiores casos de aplicação da lei, lembram, não há nenhuma empresa americana.

O Brasil, apesar de estar na companhia de dois terços dos países que se mostram incapazes de atingir 50 pontos, numa escala de 0 (altamente corrupto) a 100 (livre de corrupção), no Índice de Percepção da Corrupção, da Transparência Internacional, é o único país do hemisfério Sul a integrar os dez maiores acordos da FPCA, com duas empresas, Petrobras e Odebrecht.

Contra a tese da seletividade pesa o fato de que não foi na FCPA que a Lava Jato teve início, mas em Curitiba. Eclodido o escândalo, empresas estrangeiras nele envolvidas foram sancionadas nos EUA, como a coreana Samsung e até uma americana, a Drill Vantage.

Há um consenso de que a FPCA é um instrumento de defesa da competitividade da economia americana, mas a grande incidência sobre empresas de petróleo também pode ser explicada pelo fato de que essa é uma indústria corrompida no mundo inteiro por se espalhar por países de governança empresarial ainda incipiente.

É pelo valor das multas que a seletividade é melhor compreendida. Dos três maiores acordos da história da FCPA, dois se deram com empresas brasileiras - em bilhões de dólares: Odebrecht (3,5), Airbus (2) e Petrobras (1,7). Há ainda um fator, não considerado, que foi a determinação do governo Barack Obama em seguir à risca a tradição dos democratas, menos lenientes com o tema do que os republicanos.

Aceite-se, porém, a seletividade para entender a ausência da J&F, por exemplo, da lista dos maiores acordos do DoJ, a despeito da propina comprovada. O fato teria duas explicações. A primeira é que o setor de alimentos não é um alvo estratégico para a FPCA, e a segunda é que sua presença em território americano, com a compra de grandes frigoríficos no país, já a tornara, àquela altura, uma empresa mais americana que brasileira.

As autoras reconhecem que o ineditismo da Lava-Jato na desarticulação da corrupção no Brasil não teria sido alcançado sem a incidência da FPCA nas duas empresas, o que não as impede de apontar consequências indesejáveis do que veem como discricionariedade.

O êxito da FPCA com a Siemens levaria a Alemanha a se tornar o motor da convenção da OCDE contra o suborno transnacional que alinhou a Europa ao paradigma americano. Se a empresa foi obrigada a se submeter à nova governança, apenas sobreviveria num mercado em que todas as empresas também o fossem. A liberalidade era tamanha que, até então, as empresas europeias podiam fazer dedução fiscal de suborno no exterior.

No Brasil, dizem as autoras, o objetivo foi alcançado com a Petrobras, que estaria fora do mercado americano se não mudasse sua governança, mas não o foi na construção pesada e infraestrutura. A teoria dos jogos não se aplica à Odebrecht, que não pertencia a um setor alvo da FPCA. Foi capturada, na visão de Maria Paula e Virgínia, por sua vinculação com a Petrobras e pela expansão desses vínculos em 12 países.

A decantada lista da Odebrecht, que varreu o sistema político de cima a baixo, é usada para fundamentar a tese de que a corrupção disseminada acaba por sustentar uma situação de “equilíbrio múltiplo”. Nenhuma empresa quer pagar propina, mas o faz porque teme que seus concorrentes paguem.

O embate entre ministros do STF sobre a anulação das multas contra empresas envolvidas é outro indício da reacomodação desse equilíbrio, especialmente se Dias Toffoli, que quer anular até a confissão dos acionistas, prevalecer sobre André Mendonça.

A absorção da corrupção disseminada pelo sistema político não é a única razão apontada para a sua resiliência. O livro cita a inexistência de meios para garantir que o contrato cumprido seja pago como um razão estrutural para a renovação das práticas danosas na contratação de obras públicas.

O argumento é o de que a empresa, mesmo que tenha provas para demonstrar judicialmente que um ente público não pagou suas obrigações contratuais, só pode se valer de precatórios. Por arrastado, o recurso acaba impelindo o agente privado à propina que se destina não a ganhar o contrato, mas garantir seu cumprimento.

Com as grandes empreiteiras em fogo morto, o que restou de obra de fôlego no país foi entregue a empresas estrangeiras, notadamente as chinesas. Se a FPCA inspirou a convenção anticorrupção na OCDE e no resto do mundo, a China passa ao largo de constrangimentos institucionais. O país não é signatário da convenção da OCDE.

O lançamento, em 2021, da “Estratégia dos Estados Unidos de combate à corrupção”, registrada, no prefácio do livro pelo ministro da Controladoria-Geral da União, Vinicius de Carvalho, é uma nova tentativa de alcançar tanto a China quanto a Rússia.

Coordenada pelo Conselho de Segurança Nacional, ligado diretamente à Casa Branca, a estratégia não cita países, mas faz reiteradas referências à “corrupção estratégica” e ao “patrocínio estatal” de iniciativas visadas, deixando clara a intenção de atingir alvos que passaram ao largo do FPCA.

Ao longo do ano passado, segundo as Nações Unidas, foram investidos US$ 67,9 bilhões no Brasil, mas esse patamar caiu 22% em 2023 relativamente ao ano anterior. A dificuldade de alavancar o investimento estrangeiro, atrelada à asfixia de financiamento, pressiona o plano estratégico da Petrobras, como ficou claro na decisão que represou a distribuição de dividendos extraordinários.

Os rumos desses investimentos, principalmente na nova fronteira da petroleira nos mercados árabes, serão a prova dos noves do legado da Lava-Jato. Como as mudanças na geopolítica do petróleo desatrelaram o maior país da região, Arábia Saudita, dos EUA, os movimentos do Brasil estarão sendo seguidos de perto.

 

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