Correio Braziliense
Portugal e França, que incluiu o direito ao
aborto na Constituição, são exemplos a serem estudados no campo das políticas
contra a violência
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma,
nesta quarta-feira, o julgamento sobre a "descriminalização" da
maconha para uso pessoal, sob forte pressão da bancada evangélica, que, nesta
terça-feira, se reuniu com o presidente da Corte, ministro Luís Roberto
Barroso. Pautado pela ex-presidente do STF Rosa Weber, a Corte está a apenas um
voto de decidir a questão. Nesta terça-feira, Barroso afirmou que não haverá
"descriminalização", mas uma definição de critério objetivo e
universal para distinguir os usuários dos traficantes.
A medida é importante para reduzir o encarceramento em massa e evitar prisões sem justificativa relevante de moradores da periferia, principalmente pessoas negras, que recebem tratamento diferente dos dados a indivíduos brancos e de classe média flagrados portando drogas. Segundo o ministro Alexandre de Moraes, na ausência de uma definição legal da quantidade permitida por usuário, a polícia adota parâmetros arbitrariamente, por conta própria. Moradores da periferia com 10 gramas de maconha são presos enquanto nos bairros de classe média há casos de usuários liberados com mais de 100 gramas.
O julgamento da constitucionalidade do artigo
28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006) se arrasta desde 2015, sob forte pressão
dos setores conservadores do Congresso. Em agosto de 2023, o ministro André
Mendonça, que é evangélico e foi indicado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro,
interrompeu o julgamento mais uma vez, com um pedido de vista, cujo prazo agora
acabou. O processo conta com cinco votos favoráveis e um contrário, falta
apenas um voto para atingir maioria favorável no plenário.
Já votaram os ministros Gilmar Mendes, para
quem "a criminalização do consumo próprio fere a vida privada"; Edson
Fachin, que deu voto favorável à descriminalização apenas do porte de maconha;
Alexandre de Moraes, que propôs o limite de até 60 gramas para o porte de
maconha de uso pessoal, com base em estudo da Associação Brasileira de
Jurimetria (ABJ); e Luís Roberto Barroso, que propôs o limite de porte de 25
gramas de cannabis, critério adotado por Portugal.
A propósito, o filme O Invasor Americano (Where to invade next, em inglês),
documentário de 2015, escrito e dirigido pelo polêmico cineasta Michael Moore,
é uma sátira em estilo de reportagem sobre a forma como vários países lidam com
problemas que não foram resolvidos, mas poderiam, pelos Estados Unidos. Moore
ironiza o fracasso militar intervencionista dos EUA no Iraque e no Afeganistão
e se voluntaria a invadir, ele mesmo, outros países, em busca de exemplos para
serem "confiscados" pela sua nação: Itália (direitos trabalhistas),
França (merenda escolar e educação sexual), Finlândia (educação básica),
Tunísia (direito das mulheres), Eslovênia (ensino superior), Alemanha (relação
vida/trabalho, queda do Muro de Berlim e "desnazificação"), Islândia
(mulheres no poder).
Drogas e aborto
Em Portugal, os assuntos tratados por Moore
foram drogas, sistema de saúde universal e abolição da pena de morte.
Impressiona a entrevista com dois policiais sobre o tratamento dado aos
usuários de drogas. Moore pergunta como procedem quando flagram um homem negro
portando droga; os policiais respondem: nada, é um direito dele. Quando leva o
assunto para a questão da saúde, os policiais explicam que o sistema de saúde
pública português tem uma política para recuperar dependentes químicos.
Portugal e França, que incluiu o direito ao
aborto na Constituição, são exemplos a serem estudados no campo das políticas
contra a violência. O impacto da definição a ser adotada pelo Supremo será
muito significativo: 31% dos processos por tráfico de drogas com apreensão de
maconha poderiam ser reclassificados como porte pessoal, e 27% dos condenados
poderiam ter os julgamentos revistos. Até agora, Cristiano Zanin foi o único
ministro a dar o primeiro voto contrário. Para ele, o porte e o uso pessoal devem
continuar sendo crimes. Flávio Dino não participará da decisão, porque Rosa
Weber já havia votado.
A decisão do Supremo é até tímida em relação
às propostas mais avançadas sobre a política antidrogas, mas será um passo
significativo, se considerarmos a escala de seu impacto na população
carcerária. A política atual funciona como uma rede de recrutamento e formação
de "soldados" do tráfico nos presídios. Outra questão polêmica, mas
igualmente importante, é a criminalização do aborto, que atinge apenas as
adolescentes em situação de risco, socorridas nas emergências do sistema de
saúde devido à prática de provocar o aborto, e não as de classe média, que
abortam em clínicas especializadas, cuja existência é tolerada. Estudos mostram
que a legalização do aborto, em menos de uma geração, foi responsável pela
redução da criminalidade em Nova York, muito mais do que a política de
"tolerância zero".
Nesta terça-feira, Barroso disse que a
criminalização do aborto em geral é uma "má política pública". Para
ele, de nada serve aprisionar mulheres que o praticam: "O aborto é uma
coisa indesejável, que deve ser evitado. O papel do Estado é impedir que ele
aconteça, na medida do possível, dando educação sexual, dando contraceptivos,
amparando a mulher que deseje ter o filho, mas colocá-la na cadeia, se viveu
esse infortúnio, não serve para absolutamente nada, é uma má política pública a
criminalização", disse Barroso.
Devia proibir a cerveja também.
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