CartaCapital
“O grande perigo para os homens”, dizia
Nietzsche, “são os indivíduos doentios, não os maus, não os predadores”
A estação Paraíso do metrô de São Paulo
registrou um episódio que deveria incitar a curiosidade dos sociólogos,
psicanalistas e outros estudiosos da sociedade. A massa travestida de
verde-amarelo aguardava o comboio. O trem chegou à plataforma com os vagões
ocupados pela turma da Gaviões da Fiel. Os verde-amarelistas agitaram
as pernas para entrar. Postados às portas dos vagões, os corintianos repetiram:
“Não vão entrar, não vão entrar”.
Não entraram, nem sequer tentaram.
Ao observar os trejeitos e maus jeitos da tropa abrigada na Avenida Paulista, os esgares de seus símiles europeus e norte-americanos, é legítimo perguntar se o Brasil e o mundo não estariam prestes a reproduzir os processos sociais magistralmente analisados por Hanna Arendt no clássico As Origens do Totalitarismo. Arendt ocupa-se, sobretudo, da emergência do nazismo e do stalinismo como fenômenos do igualitarismo totalitário que vocifera: “Se você não é igual a mim, não tem direito a existir”.
Esse igualitarismo de manada pressupõe
paradoxalmente a superioridade de um modo de ser sobre outros e termina nas
tentativas de apagar pela força as diferenças de posição social e de estilos de
vida. A escória, na visão de Arendt, não tem a ver com a situação econômica e
educacional dos indivíduos, “pois até os indivíduos altamente cultos se
sentiam particularmente atraídos pelos movimentos da ralé”.
A obra de Nietzsche pode ser tomada como uma
denúncia furiosa e implacável da sociedade maquinizada e mecanizada que subjuga
o homem. Seus aforismos exclamam protestos contra as virtudes do cristianismo,
contra o ressentimento e a má consciência dos fracos, permanentemente
mergulhados na mediocridade da sociedade de massa.
Na Genealogia da Moral, Nietzsche não hesita
em afirmar: “O grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os
maus, não os predadores. São os desgraçados, os destruídos, os vencidos de
antemão – são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que
envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa nossa confiança na vida
e nos homens”.
Adorno e Horkheimer, na Dialética do
Iluminismo, mostram como Nietzsche é impiedoso com as virtudes. Ele as vê como
instrumentos das forças que pretendem manter o homem subjugado e abatido em sua
humanidade. A compaixão, por exemplo, é a confirmação da regra da
desumanidade revelada por meio da exceção que ela pratica. Uma situação humana
que suscita a compaixão é, em si mesma, a prova da injustiça. Exaltar a
compaixão é buscar a confirmação da dependência do outro, de sua alienação e
desumanização, na medida em que o homem que a recebe não pode realizar em
liberdade a sua natureza criadora.
Ao ler alguns de seus textos mais notáveis é
possível, no entanto, perceber que sua contrafilosofia acabou prisioneira da
ordem social que pretendia criticar: “Nós não conservamos nada; nem queremos,
de fato, voltar a quaisquer períodos passados; não trabalhamos pelo progresso…
simplesmente não consideramos desejável que um reino de justiça e concórdia
deva estabelecer-se na terra, deliciamo-nos com os perigos, as guerras, as
aventuras…”. Estamos diante do super-humano que em sua suposta liberdade criadora
realiza as normas do aniquilamento do outro para se submeter aos propósitos da
concorrência capitalista. É o subumano a ensaiar os propósitos do super-humano.
É um desafio encontrar entre os pensadores
modernos uma descrição tão perfeita do metabolismo social e ideológico
promovido pela sociedade competitiva. Os rebanhos humanos, os perdedores, os
fracos, não se dão conta de que entre eles nascerá o super-homem, como o
pequeno burguês ou o burguês pequeno não pode acreditar que sua crença nas
virtudes da livre concorrência vá torná-lo vítima do super-homem encarnado no
supercapitalista.
Elisabeth Rudinesco nos oferece uma crítica
profunda e original da sociedade contemporânea e das tendências intelectuais
dominantes nas ciências humanas e sociais no fim de século. O primeiro
capítulo, A Derrota do Sujeito, é o acorde inicial do tema que vai reaparecer,
sob diversos ângulos, ao longo do livro.
O derrotado é o sujeito moderno, aquele
“consciente de sua liberdade, mas atormentado pelo sexo, pela morte, pela
proibição”. Hoje ele foi substituído pela concepção “mais psicológica de um
indivíduo depressivo que foge de seu inconsciente e está preocupado em retirar
de si a essência de todo o conflito”.
Os trabalhos de destruição da subjetividade
moderna são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso
econômico e abolir o fracasso.
*Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.
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