quarta-feira, 20 de março de 2024

Martin Wolf* - A traição de Donald Trump à Ucrânia

Valor Econômico

Entregar a Vladimir Putin uma vitória não conquistada e imerecida só prejudicará os EUA

Donald Trump, ainda não mais do que um candidato à presidência dos Estados Unidos, poderá em breve dar ao seu amigo Vladimir Putin uma vitória sobre a Ucrânia. Isso seria incrível se não estivéssemos acostumados a tais ultrajes. Alguém imaginava, antes do surgimento de Trump, que um homem que tivesse tentado anular o resultado de uma eleição presidencial seria o candidato republicano da eleição seguinte?

Em agosto do ano passado, o governo Joe Biden pediu ao Congresso para fornecer recursos para a Ucrânia, ajuda humanitária e fortalecimento do controle da fronteira sul. Isso foi elaborado para obter apoio bipartidário. Trump foi contra porque queria assegurar o fracasso de Biden. Obedientes ao seu mestre, os republicanos do Senado garantiram a não aprovação do projeto. Mas, no fim, o Senado acabou aprovando um que forneceria ajuda à Ucrânia, Taiwan, Israel e aos civis da Faixa de Gaza. Esse projeto então ficou emperrado na Câmara dos Deputados. Isso porque o cachorrinho de Trump, o presidente da Câmara, Mike Johnson, se recusa a colocá-lo em votação, sabendo que ele seria aprovado e temendo, ao que parece, ser punido por Trump, que tentaria evitar a sua reeleição ao comando da Câmara em novembro. Assim como a maioria dos homens fortes, Trump valoriza a lealdade acima de tudo.

Como observou Anna Appelbaum, da revista “The Atlantic”, em coluna recente: “Para quem está de fora, essa realidade é inconcebível, difícil de compreender e impossível de entender”. Assim é. Mas é muito importante tentar, porque ela nos diz algo profundo sobre os acontecimentos no país que vem liderando o Ocidente deste o ataque a Pearl Harbor em 1941.

A Ucrânia vem lutando contra o gigante russo há dois heroicos anos, apesar de ser inferior em número de soldados e poder de fogo. O heroísmo dos ucranianos é ainda mais admirável do que o dos finlandeses na guerra do inverno de 1939-1940 contra os exércitos de Stalin. A guerra até agora mal-sucedida de Putin também está tendo um grande custo para a Rússia. Segundo o diretor da CIA, Bill Burns, “dois terços dos estoques de tanques russos pré-guerra foram destruídos e o alardeado programa de modernização militar de Putin, que durou décadas, foi esvaziado”.

Sir Roderic Lyne, ex-embaixador britânico na Rússia, escreve que “as estimativas do Ocidente sobre as perdas russas, mortos ou gravemente feridos, vão de 300 mil a 350 mil, com mais de 100 mil mortos... baixas que deverão se aproximar de meio milhão até o fim deste ano”. Além disso, acrescenta ele, “um terço do orçamento está sendo gasto com defesa e se acrescentarmos os gastos com segurança interna, o número equivale a impressionantes 40% das despesas orçamentárias”.

A Ucrânia conseguiu isso contra a ditadura revanchista de Putin com um custo mínimo para os países ocidentais. Os soldados da Otan nem mesmo estão sendo convocados para lutar. Para os Estados Unidos, o dano infligido à Rússia pela Ucrânia foi uma pechincha colossal.

Mesmo assim, agora Trump e seus acólitos parecem determinados a dar a Putin uma vitória não conquistada e imerecida. Sabemos, pelos crimes russos nas regiões ocupadas, dos horrores que ele infligiriam se vencessem. Mas há mais em jogo do que isso. Se os EUA agora abandonarem a Ucrânia, isso abalará suas alianças até os alicerces.

Como Trump conseguiu exercer tamanho controle sobre seu partido? A resposta é que grande parte da base republicana lhe é pessoalmente leal. Os republicanos são um culto. Armado com esse apoio, Trump controla os legisladores do partido, explorando a covardia e o carreirismo deles. Isso faz das próximas eleições a mais importante desde pelo menos 1932, quando Franklin Roosevelt foi eleito.

O que poderia acontecer se a Ucrânia fosse de fato abandonada? Evidentemente, isso levantaria questionamentos à confiabilidade dos EUA em toda parte. Acima de tudo, os aliados duvidariam das garantias americanas.

Como eles poderiam responder? Uma possibilidade seria um aumento perigoso na proliferação nuclear. Outra seria a transformação de alianças em outras menos dependentes dos EUA. Outra ainda seria uma tentativa de fazer acordos com a China e a Rússia. Em um mundo transnacional, é isso que muitos atores sensatos farão.

Não é difícil compreender que muitos americanos se ressentem do aproveitamento, pelos aliados, de seus recursos e da sua força de vontade. Esse é um problema clássico de ação coletiva: os países que não farão a diferença para os resultados são tentados a se aproveitar da situação. Mas uma superpotência não pode se sujeitar a isso. Seu afastamento do mundo irá remoldá-lo. Foi isso que ela tentou fazer entre as duas guerras mundiais. Não acabou bem. É improvável que um mundo do qual os EUA se retirassem seria de seu agrado.

Além disso, se eles fizessem isso, como observa Graham Allison da Universidade Harvard, estariam fazendo precisamente no momento errado. A Ucrânia certamente não é uma aproveitadora. Ela está pagando com seu sangue pelo direito de ser um país livre e democrático em uma luta desigual contra o vizinho valentão. O que ela busca é também uma ajuda financeira e militar perfeitamente acessível.

Esta guerra faz muito mais do que infligir grandes danos às forças armadas russas. Ela também revitalizou a própria Otan. Seus membros entendem cada vez mais a necessidade de aumentar os gastos com defesa. O gigante adormecido da Europa, a Alemanha, finalmente reconhece a necessidade de reforçar suas forças armadas. E não menos importante, a Finlândia e a Suécia, ambas altamente capazes, aderiram à aliança.

O que temos pela frente provavelmente será uma longa guerra de desgaste, antes que os russos percebam que não serão autorizados a apagar a Ucrânia. O papel dos aliados ocidentais é apenas fornecer dinheiro e armas. Isso não deveria estar além de sua capacidade ou vontade. Afinal, a Ucrânia continuará fornecendo a mão de obra. Abandoná-la agora, num momento de grande necessidade, demonstraria uma fraqueza catastrófica do Ocidente no momento de potencial sucesso: a Rússia ficaria exultante, a aliança ocidental desmoronaria, e muitos concluiriam que os EUA estão em um declínio irreversível. Para os EUA e o mundo, este é um momento realmente decisivo. (Tradução de Mário Zamarian)

*Martin Wolf é editor e principal comentarista econômico do FT.

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