domingo, 17 de março de 2024

Míriam Leitão - As cenas de um ato ilegal

O Globo

Ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica descortinam a construção de uma tentativa de golpe de Estado liderado pelo ex-presidente Bolsonaro

As cenas são cinematográficas, mas descritas naquele mar de “que” do texto do inquérito policial. O brigadeiro Batista Jr. pilotava o avião voltando a Brasília em 16 de dezembro de 2022. Ao lado dele, o general Heleno, que deixara a festa da formatura do neto no Instituto Tecnológico da Aeronáutica para ir a uma convocação urgente de Bolsonaro. Ali Heleno ficara “atônito”. Numa conversa na sala reservada do ITA, o brigadeiro, o piloto daquele voo, dissera que a FAB não apoiaria o golpe. No dia 14 de dezembro de manhã, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira convocou os comandantes ao seu gabinete para analisar uma das versões da minuta do golpe. O brigadeiro Batista Jr. perguntou: “Esse documento prevê a não assunção do cargo pelo novo presidente da República?”. O ministro ficou em silêncio. Ele saiu da sala. A minuta ficou sobre a mesa do general. Numa das reuniões convocadas por Jair Bolsonaro para convencer os comandantes militares a apoiá-lo, o general Freire Gomes, do Exército, teria dito ao então presidente que se ele insistisse em atentar contra o regime democrático teria que prendê-lo. Freire Gomes em seu depoimento amenizou. Falou em “responsabilidade penal”.

Foram terríveis os meses de novembro e dezembro de 2022 no relato dos ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica. O então presidente, que há muito tempo tentava uma forma de anular o processo eleitoral, passou a assediá-los depois das eleições. Queria o apoio deles para um projeto concreto, redigido em algumas versões, mas com o mesmo objetivo: dar um golpe militar para mantê-lo no poder. Assim as democracias morrem.

O conjunto dos depoimentos é robusto. Não são apenas falas. Quando os dois militares são confrontados com os textos de minutas eles reconhecem o que foi apresentado a eles pelo então presidente. O comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, disse sim. Os outros negaram. E se o Exército tivesse aceitado? Batista Jr. respondeu a essa pergunta.

“Indagado se confirma que o então comandante do Exército, general Freire Gomes, não anuiu com a proposta de golpe de estado, respondeu que sim; indagado se o posicionamento do general Freire Gomes foi determinante para que uma minuta que viabilizasse um golpe de estado não fosse adiante respondeu que sim; que caso o comandante tivesse anuído, possivelmente a tentativa de golpe de estado teria se consumado”. E assim por um fio, um triz, uma negativa, o Brasil não se curvou à vontade do candidato a ditador que nos governou por quatro anos, e que durante todo o mandato conspirou contra a democracia.

No dia 7 de dezembro, Bolsonaro recebeu o general Freire Gomes na biblioteca do Palácio Alvorada. A convocação para a reunião havia sido feita pelo ministro da Defesa, general Paulo Sérgio. Lá foi apresentado a Freire Gomes uma das minutas do decreto de ruptura institucional, através da decretação de Estado de Defesa, Estado de Sítio e Operação da Garantia da Lei e da Ordem. Bolsonaro atirava para todos os lados, usava tudo o que está na Constituição para momentos emergenciais. E não havia qualquer emergência. Apenas o presidente eleito estava ocupado em montar seu governo.

Bolsonaro está definitivamente envolvido. É o comandante em chefe da conspiração contra a ordem democrática brasileira. Ordem que nunca prezou. Terá de terminar preso por isso. Mas ainda há muito a explicar sobre outros participantes desse movimento de sedição contra a democracia.

Houve, como se sabe, uma carta de oficiais da ativa pressionando o general Freire Gomes a aderir ao golpe. Houve até reunião para redigi-la. De tudo os investigadores já sabem. Num determinado trecho, os escribas fardados registraram a frase “Covardia e injustiça são qualificações mais abominadas por soldados de verdade”. Perguntado se o documento se referia a ele, Freire Gomes respondeu que sim. Disse que soube do documento pelo serviço de comunicação do Exército e determinou aos comandantes de área fazerem uma apuração para identificar os autores e tomar as “providências cabíveis”. Ele diz que “foi identificada a participação de alguns militares que foram punidos na medida de suas participações no ato”. Mas quem são eles? E que punições? Isso ele não disse nem lhe foi perguntado. Há dúvidas. E uma grande certeza. Bolsonaro tentou, por todas as formas, por muito tempo, de forma insistente e inegável dar um golpe de Estado.

 

Um comentário: