O Globo
O governo precisa administrar bem o país, e
não ficar olhando ponteiro de pesquisa, e assim marcar diferença com o mandato
que usou a máquina apenas para preparar um golpe
Quando o tenente-coronel Mauro Cid chegou para depor na sexta-feira, às 13 horas, diante do juiz auxiliar de Alexandre de Moraes, a Polícia Federal já havia representado contra ele junto ao próprio STF. E o país estava dividido novamente, agora sobre se os áudios postados pela revista “Veja” desmoralizavam ou não a delação. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos Rodrigues, me disse, na sexta de manhã, que a PF viu com gravidade “o que as falas acusam”. Contou que havia representado ao STF para que se esclareça “já que fomos levianamente acusados”. E completou: “Ninguém acusará a PF e o STF dessa forma e ficará incólume.” De tarde, Cid terminou o depoimento preso e com o celular apreendido. O que tudo isso informa sobre a situação política atual?
Ao contrário do que comemoraram as redes
bolsonaristas, isso não alivia a situação do ex-presidente e do seu entorno.
Cid disse nos áudios que a “Veja” divulgou que a “narrativa” estava pronta,
insinuando que ele estava sendo empurrado apenas para confirmar a versão já
montada pela PF e levantou dúvidas sobre o ministro Alexandre de Moraes. No depoimento
negou o que havia dito e garantiu que colaborou espontaneamente.
Nada disso tira a força do que está sendo
provado em todas as investigações que recaem sobre o antigo ajudante de ordens
do ex-presidente. A colaboração premiada é um caminho para a prova. Não é a
prova em si. Mas existem indícios fortes que corroboram tudo o que já se sabe
que ele teria dito. Sobre as vacinas, há provas de adulteração de um site
público para emitir documento fraudulento. Sobre o inquérito das joias, há
provas materiais. Sobre o terceiro processo, o da tentativa do golpe de Estado,
há farta documentação. É um péssimo momento para Bolsonaro e seus companheiros
do projeto autoritário. Coincidentemente tudo isso vem a público no período em
que se lembra o início do mais doloroso momento da política nacional no século
passado, a ditadura militar deflagrada pelo golpe de 31 de março, que completa
60 anos no domingo que vem.
Essa era a hora de o governo Lula trabalhar
para marcar a diferença entre uma administração que usou a máquina e mobilizou
ministros por um projeto autoritário, tentando reviver esse passado odioso, e
um governo que faz o retorno à normalidade democrática e administrativa. Há
muitos avanços na atual gestão do país, mas muitas derrapagens também.
A reunião ministerial para discutir o
desempenho do governo nas pesquisas de opinião deveria estar focada nos
esforços para melhorar o governo em si e evitar tantas declarações improvisadas
e polêmicas do presidente. O governo Lula tem o que mostrar, e ficar olhando os
ponteiros das pesquisas não ajuda muito. Na própria sexta-feira, os ministérios
da Fazenda e do Planejamento divulgavam dados bons no relatório de despesas e
receitas, confirmando o projeto de buscar o déficit público mais baixo
possível.
Quem foi eleito tem o ônus de dar as
respostas para as crises, superar as dificuldades do país e entregar projetos.
A atual administração precisa ter em mente que lhe cabe governar bem. Até
porque os seus mais radicais adversários, o ex-presidente e os seus auxiliares
militares diretos, estão atravessando uma zona de turbulência criada por eles
mesmos e que só tende a piorar. A prisão espera vários deles.
É um equívoco a ideia de que os áudios
conseguidos pela revista “Veja” poderiam ajudar os investigados da intentona
golpista, porque supostamente confirmariam que Cid está sendo coagido a dizer o
que disse na delação. Primeiro, ainda não se sabe oficialmente o teor da
delação. Segundo, o que cerca hoje Bolsonaro, general Heleno, general Braga
Netto, general Paulo Sérgio Nogueira, entre outros menos estrelados, é o
conjunto probatório que já se acumulou. Entre provas e indícios estão, por
exemplo, as minutas de golpe, o vídeo da reunião de 5 de julho de 2022, em que
o general Heleno propõe virar a mesa antes das eleições, os diálogos capturados
que revelam Braga Netto instigando um ataque virtual aos comandantes do
Exército e da Aeronáutica por eles não terem aderido ao golpe. Além dos
depoimentos dos próprios ex-comandantes.
Mesmo que Lula tenha tomado a estranha, e
inútil, decisão de suspender qualquer ato sobre 31 de março — como se fosse
possível apagar a História — os rastros dos golpistas de hoje lembram o tempo
todo que o país ainda não resolveu aquele passado.
Verdade.
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