O Globo
Revelações da PF sobre o caso Marielle mostram que houve no Rio uma simbiose entre o crime e a estrutura do próprio Estado
É de democracia que se trata no caso da morte de Marielle Franco. Desde o começo. Os que mataram a vereadora, crime no qual morreu também o motorista Anderson Gomes, estavam atingindo um mandato, uma representante que se dedicava a uma agenda ampla de defesa dos moradores do Rio. A operação contra os suspeitos de serem mandantes joga luz sobre o risco democrático que se vive no Rio, pela promiscuidade entre o crime, a política e a polícia. Marielle era uma vereadora em início de primeiro mandato, sem conexões com o poder local, nascida em área de periferia, e mesmo assim, foi vista como um obstáculo à expropriação de terra pública, que seria grilada para depois, em muitos casos, ser o caminho para explorar os pobres sem casa.
O crime é de uma torpeza sem limites, e além
disso, essa etapa que está sendo revelada dos irmãos Brazão mostra um pouco do
que tem sido o Rio. Sempre se disse que organizações criminosas, traficantes e
milicianos, dominam parte do território. Mas a realidade é ainda pior. Houve
uma simbiose entre o crime e a estrutura do próprio Estado. Nesta etapa da
investigação, o que a Polícia Federal apurou é que um deputado federal, Chiquinho
Brazão, um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, Domingos
Brazão, exerciam suas funções públicas em defesa dos seus interesses
criminosos. Não seriam apenas corrompidos pelo crime, seriam o próprio crime.
Para fechar esse verdadeiro cerco à democracia, os indícios são de envolvimento
do ex-chefe da Polícia Civil e ex-chefe da Delegacia de Homicídios, Rivaldo
Barbosa. O investigador encobrindo o crime.
Por mais espantoso que pareça a atuação dos
irmãos Brazão, já havia inúmeros indícios da vinculação deles com o crime,
desde a CPI das Milícias. A procuradora- geral Raquel Dodge chegou a pedir a
denúncia de Domingos Brazão. Os Brazão eram um caso de impunidade, mas não de
surpresa. E por mais espantoso que pareça um deputado e um conselheiro
contratando matadores de aluguel para executar uma vereadora, eles não são os
únicos. Há mais deles exercendo mandatos ou cargos públicos.
A especulação imobiliária da milícia
aproveita-se das falhas da política habitacional para os pobres. Muzema, só
para citar um exemplo, favela recente na Zona Oeste, é uma área que foi toda
“incorporada” pelos milicianos. Eles vendem, financiam, projetam, constroem os
prédios. Os pobres do Rio, que pagam aluguéis caros em favelas como a Rocinha,
juntam todas as suas economias para dar entradas nos “financiamentos” e vão
morar em prédios que não têm qualquer segurança, podem cair por falha de
engenharia, ou por algum deslizamento. E seu dinheiro pode simplesmente ser
perdido caso os bandidos resolvam por alguma razão retomar o imóvel. É assim
que funciona.
Portanto, quando o inquérito diz que os
Brazão achavam que Marielle estava atrapalhando seus planos imobiliários, era
isso: ela estava colocando o seu mandato contra as ambições espúrias de quem
queria grilar terra pública e explorar os compradores. Marielle corretamente
estava querendo as mesmas áreas para habitação popular. Era o exercício
democrático do seu papel de vereadora. Pagou com a vida. Com o brutal
assassinato eles quiseram demonstrar que qualquer um que atravesse seus
interesses pode ter o mesmo fim.
O Mapa dos Grupos Armados do Rio — que foi
lançado pelo Instituto Fogo Cruzado e Geni, da Universidade Federal Fluminense,
em 2022 —mostrou que as milícias aumentaram 400% a área sob seu domínio nos
últimos 16 anos. O do tráfico, no período, cresceu 131%. O crescimento da
milícia foi mais acelerado a partir de 2018. E o Rio está há seis anos sem
política de segurança.
Cecília Oliveira, do Instituto Fogo Cruzado,
disse que muito poderia ter sido evitado se houvesse atenção ao relatório da
CPI das Milícias.
—Foram listados lá vereadores, deputados,
pessoas lotadas nas prefeituras, câmaras, secretarias do Estado e do município.
O relatório é uma espécie de inventário do crime do estado, sobre o qual
praticamente nada foi feito. Há dezenas de recomendações para o Ministério
Público, governos do estado e federal. Todos sabem quem são, como e com a ajuda
de quem eles trabalham — diz a especialista.
Que democracia é essa em que uma parlamentar
é morta por exercer seu mandato e em que o crime ocupa o próprio Estado? Para
além das mortes trágicas, esse crime ilumina também a perda de qualidade e de
consistência da democracia brasileira.
Exatamente.
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