O Globo
Quem quer censurar ‘O avesso da pele’ não se incomoda com o que é realmente escandaloso neste país: a queda da educação no IDH e o racismo que fere os negros com uma divisão inaceitável
Qual foi a intenção do escritor Jeferson Tenório ao escrever o “O avesso da pele”? Foi o que eu perguntei a ele. A obra está no meio de um turbilhão após ter sido atacada pelo obscurantismo e pela censura por supostamente não ser apropriada para jovens do ensino médio. “Eu tinha a intenção de fazer uma grande declaração de amor ao conhecimento, aos livros, às bibliotecas, às referências literárias.” Na história, Henrique, o professor de literatura, consegue atrair seus alunos para “Crime e castigo”, de Dostoiévski. Ele se entusiasma com a vitória e planeja levá-los para Kafka, Cervantes, Virgínia Woolf, Toni Morrison. Ele pensava nisso tão intensamente, andando na rua, que não ouve as sirenes. Ele sonhava com literatura, quando a polícia chegou. Ele era negro.
Vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, traduzido
em 16 países e proibido a
estudantes do Paraná, Mato Grosso e Goiás, o livro pode ser entendido
como uma obra sobre o afeto entre filho e pai, a complexidade das relações
raciais no Brasil, a violência cotidiana de gestos, palavras, supostas piadas,
abordagens policiais a que os negros brasileiros são submetidos. Fala da
dificuldade de ensinar literatura a jovens, e da corrida do professor entre
colégios para ter uma renda. É um livro sobre o Brasil com suas feridas. É
tudo, menos um livro de pornografia.
Quem quer censurar usa uma cena ou um
palavrão para atirar contra o livro. Pretexto. Parte de quem não vê o que é
realmente escandaloso no país. É a educação
ter caído no IDH em 2022. É sermos ainda um país que fere diariamente os
negros com uma divisão inaceitável. Muita gente tem reagido em defesa do livro,
mas ficam as dúvidas. Quando termina um movimento que começa com a retirada de
livros das escolas? Que mal íntimo a censura faz ao autor? Perguntei a Jeferson
Tenório se esses fatos podem acabar provocando a autocensura.
— Acho que isso é uma das estratégias do
ultraconservadorismo, em que se inverte a lógica. Então você coloca a culpa na
vítima. Como se fosse um crime colocar um palavrão ou uma cena de sexo num
livro. E aí o autor, o artista, passa a se questionar: será que eu estou de
fato exagerando? É um exercício que a gente deve fazer enquanto criadores. O
exercício de liberdade. Um exercício interno de entender que o que eu estou
produzindo depende justamente desse consentimento de liberdade que o fazer
estético nos dá. Ou seja, eu só posso criar uma obra literária a partir dessa
premissa da liberdade. Mas não é fácil mesmo porque a gente tem que estar
sempre lutando consigo mesmo: será que eu coloco isso aqui? Será que não? —
respondeu Jeferson, na entrevista que fiz com ele na GloboNews.
A censura é insidiosa. Ela arma essa cilada.
Tenta ganhar até quando perde, entrando dentro do autor. Jeferson está
escrevendo um novo livro que se passa no ambiente acadêmico em mudança, após a
chegada de pessoas negras.
— Houve uma revolução silenciosa, o rosto da
universidade se modificou e com isso mudou também o conhecimento que é validado
ali dentro.
Hoje há muito mais negros publicando obras
que fazem sucesso e têm destaque, mas há aí uma sutileza importante a ser
entendida, no que ele define como uma “primavera negra”.
— Isso deve ser comemorado. A gente pode
falar de Conceição Evaristo, Itamar Vieira Junior, Eliana Alves Cruz, Ana Maria
Gonçalves. Por outro lado, me preocupa um pouco esse discurso de tentar
“guetizar” os escritores negros, e dizer que eles não fazem uma literatura
canônica. Como se a gente estivesse fazendo outra coisa que não literatura.
Porém, é importante que a gente marque um território político ao dizer e
reforçar, em determinados momentos, que são autores negros e, em outros, se
colocar como autor.
“O avesso da pele” é sobre literatura,
relações familiares, racismo estrutural. O autor explica:
—O professor Henrique é um professor negro de
literatura, essas relações familiares acabam sendo atravessadas pela questão do
racismo estrutural e pela violência policial. É um livro que congrega todos
esses temas em torno da história entre pai e filho.
“O avesso da pele” é lindo, forte e narrado
de forma a criar a imediata intimidade do leitor com a história. “Até o fim
você acreditou que os livros podiam fazer algo pelas pessoas”, diz Pedro ao seu
pai, Henrique. É esse o livro que tentam censurar no Brasil. Começam assim as
fogueiras.
''O avesso da pele'',gostei do título.
ResponderExcluirPor essa ótica da censura,os livros de Jorge Amado,deveriam sair de catálogo.
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