O Globo
Chegamos ao ponto em que o presidente da
República que foi vítima de uma nova tentativa de golpe escolhe não lembrar
1964
O golpe de 1964 não é passado. Não é um ponto distante na História, que olhamos com aquele enfado escolar com que se acompanham o Descobrimento ou os bandeirantes. A ditadura que nasceu na madrugada daquele 2 de abril, quando um senador solitário tornou vaga a Presidência, está ainda viva e pulsando, hoje, no Brasil. Está nas ruas. Não faz nem dois anos, quatro generais de Exército e um almirante de esquadra se sentiram confortáveis o suficiente para planejar um novo golpe militar. Fizeram isso enquanto milhares de brasileiros acampavam na frente dos quartéis pedindo assim: um golpe que impedisse o candidato eleito de assumir a Presidência. Pois aquele presidente, nosso atual presidente, inacreditavelmente decidiu que o governo não deve lembrar o golpe.
No auge da crise econômica argentina, não se
viu movimentação nas Forças Armadas do país. Os militares tampouco se mexeram
quando o Chile encheu
as ruas de gente em protestos violentos. Não é por acidente. O general Jorge
Rafael Videla morreu com diarreia, no vaso sanitário de sua cela, e não há
general argentino que não saiba disso. Os chilenos viram o general Augusto
Pinochet passar seus últimos anos fugindo de um mandado de prisão, humilhado,
alquebrado numa cadeira de rodas. Até os paraguaios se lembram do general
Alfredo Stroessner com o asco que merece o pedófilo que foi. Nós escolhemos,
ativamente, não lembrar. Vivemos hoje as consequências disso.
O histórico de intervenções militares não é
só nosso — é regional. Rui Barbosa passou a última década de vida alertando
sobre o risco de o caudilhismo deles contaminar nosso país. E, por caudilhismo,
entenda-se o que ele é: disputa política de chefes militares. Gente que anda
com uniforme e lidera tropas. Se no século XIX não eram exércitos regulares, no
século XX se tornaram. A diferença é que nossos vizinhos todos se curaram do
grande mal político que manchou a América do Sul. Nós é que não.
Alguns acham que a diferença foi a Justiça.
Mas não é essa a diferença. O que argentinos e chilenos, nossos vizinhos mais
comparáveis, fizeram foi um exercício ativo de lembrança. Esta é talvez a maior
lição política do século XX: lembrar faz diferença. Aprendemos isso na forma
como escolhemos lidar com o Holocausto. Da Praça de Maio sempre com suas mães,
hoje já bisavós, com o lenço branco. Do Museu da Memória e dos Direitos Humanos
que toda criança chilena visita em Santiago. A lembrança do que foi a ditadura
é um esforço cívico e um dever do Estado.
Todo 31 de março é a mesma coisa. Passamos
semanas discutindo se os quartéis celebrarão a instauração da ditadura. Ainda
hoje as Forças Armadas não tratam o que fizeram pelo que foi: um golpe de
Estado. A ruptura da Constituição. A interrupção da democracia e a instauração
de uma ditadura.
Se eles se sentem à vontade para tratar a
violência que impuseram ao país como algo heroico, é porque o Estado brasileiro
não tem posição oficial a respeito. Se um general pode subir ao microfone e
elogiar um golpe, se ele pode discutir a interpretação da História, é porque o
Estado concorda que há debate. As Forças Armadas são do Estado. E chegamos ao
ponto em que o presidente da República que foi vítima de uma nova tentativa de
golpe escolhe não lembrar.
A escolha de não lembrar, a escolha de não
tratar com clareza a coisa pelo nome, é o que faz acontecer de novo. Como
aconteceu.
No domingo, o golpe faz 60 anos. Sua sombra continuará pendendo sobre nós enquanto o Estado brasileiro não disser com clareza o que é democracia, o que é ditadura e onde é o lugar do militar na política. (Fora.) Já vimos que não será o atual presidente.
Verdade.
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