O Globo
Posso sofrer uma reprimenda que chega na
forma de advertência sobre minha inferioridade
Estudei sociologicamente o rito autoritário
que intitula esta crônica. Conheço-o desde menino e, como costume ou hábito,
ele é parte “natural” da minha sociedade. Presenciei situações em que a
ausência de reconhecimento de uma autoridade causava embaraço e produzia
vergonha.
Volto ao assunto quando, horrorizado, tomo
conhecimento do absurdo cruel ocorrido em Vila Valqueire, no Rio de Janeiro,
onde um motoboy entregador de refeição levou um tiro por não ter se comportado
convenientemente com a esposa de um cliente militar. Foi, sem dúvida, um “você
sabe com quem está falando” à bala.
Insisto em que precisamos ter consciência desses hábitos autoritários embutidos em fórmulas habituais que, no discurso político populista, alimentam a proposta de prometer para não cumprir. É preciso realizar uma engenharia política capaz de neutralizar esses costumes aristocráticos, responsáveis por graduações e hierarquias em todos os lugares.
Não há quem não queira ser celebridade ou
autoridade no Brasil. Ser “conhecido” é não se preocupar mais em anunciar, em
viva voz ou à bala, quem somos. O preço alto e, às vezes violento, de não saber
com quem se fala é um sintoma de resistência à mobilidade e ao anonimato.
Anonimato que cimenta a igualdade, pois trata todos do mesmo modo.
Se há a suposição de que tenho de saber com
quem estou falando, então a sociedade onde vivo diz que todos devem se
conhecer. Ora, o conhecer mútuo implica saber o lugar de cada um no sistema. O
resultado dessa ética de gradação é obvia. Se não “trato bem” e não presto
atenção aos outros, posso sofrer uma reprimenda que chega na forma de uma
advertência sobre minha inferioridade. Sobretudo se desempenho papéis como
vendedor, motoboy, carteiro, motorista, porteiro, garçom — a lista é enorme e
móvel —, que demandam o anonimato e a impessoalidade, essas dimensões que
exigem a igualdade na relação com todos os clientes.
O “você sabe com quem está falando?” é fruto
de uma sociedade em que as relações são mais importantes que as leis. Ela é
avessa à mobilidade e à igualdade. Nela, inferiores e superiores se conhecem
(esse traço é o eixo das “elites”) e têm códigos habituais de tratamento,
porque a exceção é uma intrusiva igualdade, e não a boa e velha hierarquia.
Vivemos entre a impessoalidade da lei e as demandas irrecusáveis e
particularistas dos amigos e conhecidos.
Nossa questão permanente e exaustiva é como,
no universo público, enfrentar os “mal-educados”, os malandros e os que querem
levar vantagem em tudo. Os possuídos por um salve-se quem puder, quando se
encontram na nudez de um maldito anonimato. Eu corria para entrar na barca e
imbecilmente ficar ao lado de quem fazia o mesmo. No bonde ou no ônibus, fazia
a mesma coisa. Até que pude “andar de carro” e fui obrigado a “furar” o sinal
para escapar dos “barbeiros”. Passei da indignada fila do ônibus para o frustrante
engarrafamento do trânsito. Uma frustração que tem sua raiz no conflito de uma
sociedade dividida entre o ideal hierárquico do “eu sou especial” e um sistema
baseado na impessoalidade de uma igualdade lida como erro, confusão ou insulto.
É complicado, e fica cada vez mais impraticável, lidar com o mundo público da
“rua” como “casa” — um espaço onde todos sabem com quem estão falando.
A passagem da família e da amizade para a
cidadania requer a consciência da universalidade das leis que valem para todos.
Mas, para isso, será preciso ceder ao particularismo relativista, mãe do
apadrinhamento que distingue os interesses pessoais das demandas impessoais e
universais da sociedade. Não cabe continuar com o refrão maquiavélico do “aos
amigos, tudo; aos inimigos, a lei”, o anonimato, a impessoalidade e, é claro,
pois ninguém é de ferro, o “você sabe com quem está falando?”.
Pois é.
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