O Globo
Realidade se mostrou mais complexa que tentativa de impor lógica antiga a modelo novo de relação de trabalho
A negociação de mais de um ano entre governo,
empresas, sindicatos pouco representativos e organizados e trabalhadores
informais dispersos em torno da ideia da regulamentação trabalhista de
motoristas e entregadores por aplicativos talvez seja o exemplo mais acabado da
dificuldade do PT de operar com suas velhas lideranças num mundo que passou por
uma enorme transformação nos 7 anos em que o partido ficou longe do poder.
Lula fez do tema uma das suas principais bandeiras, tanto na campanha presidencial quanto em sua plataforma de reinserção como liderança global. Mas a tentativa árdua, circular e muitas vezes improdutiva, ao longo de 2023 e até agora, de construir um projeto de lei para formalização e proteção previdenciária desses trabalhadores mostrou que nem como candidato nem como presidente ele foi apresentado a todos os dados e às nuances que cercam essa nova e tão disseminada atividade.
A proposta que deverá ser apresentada com
pompa na segunda-feira atesta o fracasso do grupo capitaneado pelo Ministério
do Trabalho em tentar construir uma saída que abarcasse tanto motoristas de
plataformas de transporte de passageiros quanto entregadores de produtos por
aplicativos. Os últimos deverão ficar fora do anúncio de Lula e estão prestes a
abandonar a mesa de negociação, por incompatibilidades que parecem
intransponíveis com a pasta de Luiz Marinho.
O ministro, durante toda a negociação, trata
os aplicativos de entrega como vilões a praticar a exploração dos entregadores.
Sabe-se que a precarização nessa modalidade é real e precisa ser evitada, mas
as peculiaridades da atividade tornam difícil que a solução seja algo próximo
do modelo da velha CLT em que Lula, Marinho, Gilberto Carvalho e os demais
assessores da pasta, todos oriundos do sindicalismo do ABC dos anos 1970 e
1980, foram forjados.
Os entregadores não têm e não querem ter
vínculo sindical. Fogem da ideia de dar parte da pequena e sacrificada renda
que obtêm em seu “corre” ao governo na forma de contribuição sindical ou
previdenciária. E não desejam de forma alguma ser “fidelizados” a qualquer
plataforma, porque é na flexibilidade que conseguem aumentar seu rendimento.
A maior aprovação dessa categoria que
trabalha em cima de motos ou dirigindo carros para transportar passageiros a
uma medida recente do governo foi à de Jair Bolsonaro que esticou o prazo da
carteira de motoristas e aliviou o peso de multas e pontos nas carteiras. Disso
decorre o fato, medido em pesquisas que os negociadores do governo viram, de
grande parte desses proletários do século XXI ser ou apolítica ou, quando
provocada, demonstrar tendência a ser bolsonarista.
A pressa de Lula em fechar uma proposta para
lhes dar segurança trabalhista e previdenciária, portanto, também decorre da
necessidade de falar a um público que não o viu em ação no estádio da Vila
Euclides e não usufruiu os ganhos de seus dois primeiros mandatos, com
programas como o Prouni.
Mas a embocadura está longe de ser efetiva. A
proposta prestes a ser fechada para os motoristas, que implicará contribuição
de 20,5% das empresas e 7% dos trabalhadores à Previdência, afugenta tanto a
associação dos aplicativos de entrega quanto os entregadores.
O erro de tratar todos como parte de uma
mesma “categoria” é que entregadores são bem menos organizados, passam menos
horas trabalhando (o fluxo maior é nas grandes cidades e concentrado nos
horários de refeições), os custos são menores com manutenção e aquisição de
veículos e combustíveis, e o vínculo com as plataformas é menor.
O resultado é que o ato de segunda-feira será
fraturado. Frustrante para a agenda de Lula e um risco de, em vez de aumentar,
reduzir a tênue proteção que os entregadores vêm conquistando a duras penas. Um
projeto que pode ter ficado capenga graças ao apego a balizas de um mundo que
não existe mais.
Pois é.
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