O Globo
O que mais se ouve de quem participou da
deliberação de que não haveria manifestações ‘dos dois lados’ é: ‘Para quê?’
O desconforto na esquerda e na academia com a
decisão de Lula de não associar seu governo a atos alusivos aos 60 anos do
golpe militar de 1964 é palpável. Embora no entorno do presidente se admita que
essa divergência pode causar alguma decepção no eleitorado histórico e mais
fiel a ele, a orientação será mantida e é defendida pelos aliados mais
próximos. O que mais se ouve de quem participou de alguma forma da deliberação
de que não haveria manifestações “dos dois lados” — nem das pastas ligadas aos
diretos humanos nem das Forças Armadas — é: “Para quê?”.
Não se trata de minimizar a gravidade de um golpe que mergulhou o país numa ditadura de 21 anos capaz de transformar tortura, desaparecimentos e execuções em porões em política de Estado. Ninguém em sã consciência ou que debata com honestidade intelectual poderia, a partir de uma decisão de governo, achar que Lula ou o PT tergiversem quanto ao repúdio à ditadura militar.
É justamente o muito recente flerte do Brasil
com um repeteco canhestro do golpismo de 60 anos atrás que explica e, a meu
ver, justifica a decisão de não fazer na efeméride nenhum tipo de evento
oficial. Caso houvesse solenidades referentes à data reunindo Lula e seus
ministros, como seria possível evitar que, entre os militares, prevalecessem
pressões pela defesa do que até hoje muitos fardados insistem em chamar de
“revolução”?
Se há algo que se quer evitar neste momento,
é mais convulsão na caserna. O aprofundamento das investigações a respeito do 8
de Janeiro e dos meses que transcorreram pouco antes e depois das eleições de
2022 mostra que o grau de contaminação das Forças Armadas pelo golpismo
bolsonarista atingiu mais fortemente o alto escalão do oficialato do que se
tinha a percepção enquanto o governo Bolsonaro ainda vigia.
Em português claro: bastaria que o comandante
do Exército, general Freire Gomes, ou o da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do
ar Baptista Jr., tivessem aderido aos muitos planos que lhes foram
insistentemente apresentados pelo presidente da República para que a manutenção
da democracia brasileira se tornasse no mínimo duvidosa.
Esse grau de erosão do compromisso
democrático entre os militares não foi atingido da noite para o dia, nem por
geração espontânea. Tratou-se de projeto levado a cabo por Bolsonaro durante
muito tempo, conquistando primeiro os generais da reserva e, a partir daí, se
espraiando para as demais Forças e diferentes graus de hierarquia.
Não se faz o desmame das ideias golpistas da
noite para o dia, e dar munição àqueles que gostam de instilar nos quartéis o
sentimento antipetista e a teoria de que vem aí uma perseguição aos fardados
não parece uma boa ideia. Como diz um ministro, é preciso fazer uma coisa por
vez, e a prioridade incontornável é assistir à punição judicial e
administrativa de todos aqueles que conspiraram contra as instituições e a
democracia com o ex-presidente.
A apatia e a incredulidade que se abateram
sobre as universidades, os historiadores, os partidos e os movimentos sociais
diante de algo fácil de compreender à luz dos acontecimentos mostra uma
dependência excessiva desses segmentos da condução estatal, algo surpreendente
quando se pensa que comandaram a resistência nos anos em que a cultura, a
academia e os direitos humanos ficaram à mercê dos ataques bolsonaristas.
Cabe a esses setores, bem como aos partidos
de esquerda, lembrar os 60 anos do golpe e rememorar os horrores de um arbítrio
que não teve nada de brando e que as novas gerações, à medida que o tempo
passa, deixam de perceber em toda a sua gravidade.
Quanto ao governo, se conseguir devolver as
Forças Armadas ao cumprimento estrito de seu dever constitucional, será uma
grande contribuição para que o flagelo da ditadura com que Bolsonaro, para
dizer o mínimo, flertou não se repita. Nunca mais.
Se Bolsonaro estivesse no poder a homenagem ao golpe seria esfuziante.
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