Folha de S. Paulo
Direito constitunegocial brasileiro busca
esvaziar direitos fundamentais no STF
Um juiz constitucional trabalha a partir da
categoria de constitucionalidade. Um juiz constitunegocial adota o parâmetro do
"bom para ambas as partes". Um avalia se leis, políticas e práticas
estatais respeitam a Constituição.
O outro negocia a constitucionalidade para fins não publicáveis. À moda Russomanno.
Um juiz constitucional argumenta. Um juiz constitunegocial barganha. Um navega o cânone jurídico e a análise de fatos a partir de compromissos normativos. O outro persegue interesses a partir de compromissos patrimonialistas, familistas, às vezes partidários. Com a força e autoridade de seu cargo, o juiz constitunegocial e seus parentes saem na frente.
Um juiz constitucional recebe advogados em
seu gabinete para ouvir ponderações jurídicas. Adota rituais de discrição e
imparcialidade e se expressa em votos escritos, audiências. Acredita possível,
em alguma medida, apesar de conflituoso e demasiado humano, o "governo das
leis e não dos homens".
Um juiz constitunegocial se reúne com
empresários, políticos e advogados lobistas em qualquer lugar fora de seu
gabinete. Dos jardins do Lago Sul aos
hotéis de Lisboa, Nova
York e Londres.
Aceita qualquer convite ao exterior e frequenta
eventos para "pensar o Brasil" fora do Brasil. Uma confraria
neocolonial de homens brancos que confunde sensibilidade cosmopolita com vôo
transatlântico. Exerce sua vocação provinciana na metrópole.
O constitucionalismo brasileiro tenta
participar do projeto político moderno de disciplinar o poder e promover
liberdade na igualdade com democracia. Aos trancos, chegou na Constituição de
1988, anunciando horizonte de emancipação e justiça.
O constitunegocialismo tem raízes num projeto
pré-moderno. Lembra que, entre nossas elites jurídicas e judiciais, predomina a
mediocridade e a cordialidade do "cada caso é um caso". Não por
preguiça hermenêutica, mas por predisposição a comerciar princípios. Essa
tradição fez a própria Constituição de 1988 preservar o entulho de privilégios
corporativos (magistocráticos e milicocráticos).
Em Brasília, nessa semana, reúnem-se milhares
de indígenas no Acampamento Terra Livre, em protesto pela falta de
demarcação de seus territórios. Gilmar Mendes respondeu
ao movimento e suspendeu todas as ações que, com base em decisão do
próprio STF,
questionam a lei do marco
temporal de terras indígenas. E
mandou instaurar
uma "comissão de conciliação" para receber propostas nessa
"nova abordagem do litígio constitucional".
Essa "nova abordagem" tem a idade
do estado brasileiro. Quando aplicada por ministro que empreende no agro
mato-grossense, ganha mais sabor. Devoto do constitunegocialismo, o ministro
também se celebrizou
pelo "pânico de Copacabana", num memorável silogismo:
"Copacabana certamente teve índios, em algum momento. Adotar a tese que
está aqui, podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana".
A tese
do "marco temporal" de terras indígenas é a maior obra
doutrinária do constitunegocialismo brasileiro. A "comissão de
conciliação", sua grande invenção institucional.
A comissão de conciliação é apenas o modo
formal da barganha de direitos. O modo informal ocorre, nesse momento, em Londres. Lá se
encontram, pensando o Brasil na ausência de indígenas, Gilmar Mendes, Alexandre
de Moraes e Dias Toffoli,
no 1º Fórum
Jurídico do "Grupo Voto".
O marco temporal já foi derrotado
pelo plenário do STF. Constitunegocialistas do tribunal não se resignaram e
lançaram a carta da conciliação para garantir "segurança jurídica"
entre interesses de fazendeiros e direitos territoriais indígenas. De maneira
monocrática.
Dispositivo procedimental de aparência
inofensiva e burocrática, uma comissão de conciliação pode até ajudar em
situações que envolvam certos tipos de conflitos, mas não na discussão do
conteúdo de um direito. Revoluciona a jurisdição constitucional por transformá-la
em outra coisa. Em vez de jurisdição, negociação; em vez de constitucional,
senhorial. Uma revolução contra a Constituição, não a favor.
Nessa mesa, com o resgate da assimetria de
poder que direitos fundamentais surgiram para combater, e com a renúncia da
responsabilidade que a jurisdição constitucional coloca nos ombros de ministros
do STF, os indígenas não participam. E nem deveriam participar.
Excelente! O colunista mostra perfeitamente os erros de ministros do STF, em especial do temido Gilmar Mendes.
ResponderExcluirSei.
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