CartaCapital
A ditadura impôs a ideologia da guerra na
segurança pública
Por ocasião dos 60 anos do golpe que
implantou a ditadura no
Brasil, os protofascistas de plantão aproveitaram para lembrar o cenário
idílico que reinava na segurança
pública. Nada mais falso, no entanto.
No período militar, não apenas se observou o
recorde de crescimento nas taxas de crimes no País, em particular dos
homicídios, como se contratou a crise e o esgarçamento da segurança pública nas
décadas seguintes. De fato, enquanto o aumento da taxa de homicídios na década
de 1980 foi de 90%, nas duas décadas posteriores tal variação foi de 18% e 6%.
Ou seja, nos anos 80, o crescimento da taxa de homicídios foi 751% maior do que
na média das duas décadas posteriores. O que ocorreu?
A escalada de crimes violentos que se deu de forma mais intensiva na década de 80 e se prolongou nas décadas posteriores é resultado de decisões equivocadas dos militares, não apenas no plano socioeconômico, mas no que diz respeito ao funcionamento das instituições do sistema de segurança pública.
Relativamente à questão socioeconômica, em
1970 o Brasil passou a ser um país com população majoritariamente urbana. Uma
década depois, mais 30 milhões de habitantes passaram a residir nas grandes
cidades. Nesse enredo, os militares do “Brasil Grande” escolheram subsidiar a
indústria e o petróleo em detrimento do investimento nos cidadãos. Alguns
números. Em 1980, dos indivíduos com mais de 15 anos, 25,9% eram analfabetos.
Em média, o brasileiro possuía menos de quatro anos de estudo. Apenas 19% das
crianças de 4 a 6 anos e 56% dos jovens de 15 a 17 anos estavam matriculados na
escola, respectivamente.
O ambiente urbano caótico dos anos 80,
juntamente com o aumento da desigualdade de renda, estagnação econômica,
hiperinflação e uma escola excludente e para poucos, que se deu como
consequência de decisões políticas e econômicas equivocadas da era militar,
criaram o cenário propício para o aumento das tensões e crimes nas grandes
metrópoles.
No que se refere ao sistema de segurança
pública estrito senso, os militares impuseram uma ideologia de guerra e do
controle pelo medo e coerção aos indesejáveis, isto é, os “subversivos”, os
pobres, os negros e moradores das periferias. Nessa jornada, a ditadura
extinguiu as Guardas Civis e apostou na hipertrofia das Polícias
Militares, em detrimento das Polícias Civis e da capacidade
investigativa. O resultado foi o limiar do encarceramento em massa e o
sucateamento da investigação. Com efeito, entre 1980 e 2001, o número de
detentos aumentou quase quatro vezes. Enquanto no começo dos anos 80, a cada
100 homicídios a polícia prendia 62 homicidas, esse índice caiu, no entanto,
pela metade apenas dez anos depois. Ou seja, privilegiou-se a prisão do ladrão
de galinha, aquele detido pela PM no policiamento ostensivo, em detrimento das
prisões qualificadas de criminosos contumazes, que exigem boa investigação e
trabalho de inteligência policial.
Houve uma hipertrofia da PM, em detrimento da
Polícia Civil e da capacidade de investigação
Não fosse pouco o estrago, a ditadura avançou
ainda mais para desarticular qualquer possibilidade de construção de um modelo
de segurança pública efetivo, ao aproximar os militares da comunidade de
repressão política aos policiais das polícias estaduais. Norteado pela doutrina
de segurança nacional, o Sistema Nacional de Informações, criado logo após o
golpe militar, se utilizava de informações dos Departamentos de Ordem Política
e Social, subordinados às Secretarias de Segurança Pública, e dos policiais civis.
A partir de 1967, com a criação do Centro de Informações do Exército, a máquina
da repressão passou não apenas a participar da coleta de informações, mas da
repressão direta, reforçando a lógica da brutalidade e da tortura nas polícias.
Nos estertores da ditadura, vários militares
envolvidos com a repressão passaram a atuar na contravenção e no crime
organizado. Entre os mais conhecidos, o Capitão Guimarães, chefe do jogo do
bicho, idealizou a profissionalização da contravenção no Rio de Janeiro, no
melhor estilo da máfia italiana, dividindo os territórios pelas famílias. Outro
nome notório é o do Coronel Paulo Magalhães, torturador confesso que liderou
uma milícia na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
Um efeito colateral da repressão política foi
ainda a criação da primeira facção criminosa, a Falange Vermelha, o atual
Comando Vermelho. Fundada em 1979 por presos do Presídio Cândido Mendes, na
Ilha Grande, seus idealizadores, que visavam melhorar as condições precárias
dos detentos, aprenderam na convivência com os presos políticos os métodos,
valores e meios de financiamento para fazer funcionar uma organização
clandestina. O seu lema, “Paz, Justiça e Liberdade”, bem como as regras
estatutárias terminaram servindo de modelo para a criação do Primeiro Comando
da Capital, fundado em 1993, e para as cerca de 70 facções criminais que
existem no Brasil atualmente, nascidas sempre nos cárceres, como resultado das
condições precárias dos presídios desencadeadas pelo descaso do Estado e pelo
encarceramento em massa.
Finalmente, mesmo o regime tendo sido
encerrado em 1985, os militares das Forças Armadas conseguiram tutelar a
Constituinte e impor suas concepções no tema da segurança pública para
cristalizar o modelo que vigia, por meio da imposição do artigo 144: “A segurança
pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para
a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio,
através dos seguintes órgãos (…) [e cita as polícias]”.
Com isso, apesar de no artigo 6º a segurança
pública constar como um direito social, tal anseio terminou virando letra morta
pela redação do entulho autoritário retardado, o artigo 144, que obstaculizou
qualquer possibilidade de se avançar para a construção de um sistema de
segurança pública integrado, multissetorial e efetivo para a garantia dos
direitos fundamentais de cidadania, fazendo com que continuemos voltando nossos
olhos ainda hoje para um discurso abstrato de ordem a ser ministrado pelas polícias.
*Pesquisador do Ipea, coordenador do Atlas da
Violência e professor do PPGSEG-UVV. Autor de Causas e Consequências do Crime
no Brasil.
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital,
em 24 de abril de 2024.
Muito bom o artigo.
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