sábado, 20 de abril de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo* -Ditadura tecnológica

CartaCapital

A instantaneidade que impera em nossos tempos apagou rapidamente na mídia e nas redes o episódio que envolveu o bilionário Elon Musk e o ministro do STF Alexandre de Moraes. Devo acentuar a palavra instantaneidade. Ela significa os modos linguísticos que se apresentam na sociabilidade […]

A instantaneidade que impera em nossos tempos apagou rapidamente na mídia e nas redes o episódio que envolveu o bilionário Elon Musk e o ministro do STF Alexandre de Moraes.

Devo acentuar a palavra instantaneidade. Ela significa os modos linguísticos que se apresentam na sociabilidade das redes sociais construídas no interior das plataformas. Assim funcionam as comunicações e as opiniões que circulam no Facebook, Instagram, WhatsApp, X (outrora Twitter).

Musk e seus sicários bolsonaristas invocaram a liberdade de expressão para atacar o STF na pessoa do ministro Alexandre de Moraes. A propósito dessa reivindicação libertária muskiana e bolsonarista, vou cometer a ousadia de perpetrar algumas considerações inspiradas em autores que trataram do mundo das plataformas.

Franco “Bifo” Berardi esclarece as diferenças estruturais entre as funções institucionais de Moraes e o modo de operação das plataformas na defesa da liberdade de expressão.

Berardi estabelece uma distinção entre as formas tecnológicas dominantes no antigo “sistema de máquinas” e aquelas impulsionadas pelos avanços da Inteligência Artificial, da internet das coisas, da nanotecnologia e da robótica.

“Passamos de um regime disciplinar a um regime de controle. No primeiro caso, a máquina constituiu-se diante do corpo e da mente humana, era externa em relação ao corpo que permanecia corpo pré-técnico. Por isso, o corpo-mente devia ser regulado normativa, legal e institucionalmente, para, em seguida, ser submetido ao ritmo das máquinas concatenadas.

“No segundo caso, o que se nos apresenta hoje, a máquina não está mais diante, e sim dentro do corpo, dentro da mente, e os corpos não podem se relacionar nem a mente se expressar sem o suporte técnico da máquina biopolítica. Por isso, não é mais necessário o trabalho de disciplinamento político, legislativo, jurídico. O controle dá-se inteiramente a partir da própria máquina interna.

“Não somente a máquina, mas sua concepção também sofre uma mutação nessa passagem. Na época digital, a máquina é diferença de informação, não exterioridade, mas sim modelação linguística, automatismo lógico e cognitivo.”

Em entrevista à Folha de S.Paulo, ­Stuart Russell, professor de Ciência da Computação da Universidade da ­Califórnia-Berkeley afirmou:

“Estamos construindo sistemas cada vez mais poderosos que não entendemos e não controlamos. Temos de resolver o problema do controle. Os governos deveriam exigir que as empresas garantam que seus sistemas se comportem adequadamente”.

Evgeny Morozov, no livro Big Tech, citou o debate entre Gilles Deleuze e ­Antonio Negri nos anos 90 do século passado, quando as formas tecnológicas, hoje dominantes, já mostravam suas forças.

“Como disse Gilles Deleuze em conversa com Antonio Negri em 1990, ‘em face das formas próximas de um controle incessante em meio aberto, é possível que os confinamentos mais duros pareçam pertencer a um passado delicioso e benevolente’. Essa conexão entre a aparente abertura da nossa infraestrutura tecnológica e o grau cada vez maior de controle continua a ser pouco compreendida.”

Nesse processo de autotransformação, é importante compreender que a materialidade do sistema de máquinas entrega sua alma ao comando do “General ­Intellect”. Assim, um certo Karl Marx, ainda no século XIX, observou: “… O desenvolvimento do capital fixo (sistema de máquinas) indica o grau em que o conhecimento social se tornou uma força direta de produção e em que medida, portanto, o processo da vida social foi colocado sob o controle do General Intellect e passou a ser transformado de acordo com ele”.

Em seu desenvolvimento, a Indústria 4.0 exprime o avanço do sistema de máquinas promovido pelo General ­Intellect. A nova fase da digitalização é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e na transferência de instruções digitais para o mundo físico.

As redes sociais devem ser observadas no âmbito dessas transformações tecnológicas. Prometidas como o espaço do movimento livre das ideias e das opiniões, se transformaram num calabouço policialesco em que o debate livre de ideias é substituído pela vigilância e pelo cancelamento. A vigilância exige convicções esféricas, maciças, impenetráveis, perfeitas. A vigilância deve adquirir aquela solidez própria da turba enfurecida, disposta ao linchamento. 

*Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.

 

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