O Globo
A motivação presidencial é péssima: não
melindrar os quartéis
A esquerda ouviu, mortificada, o recado
de Lula:
— O que eu não posso é não saber tocar a
história para frente, ficar remoendo sempre.
O governo não participou de atos de memória sobre os 60 anos do golpe de 1964 e, ao contrário do que planejava o ministro Silvio Almeida, não houve nem haverá um pedido estatal de desculpas pelas violações de direitos humanos da ditadura militar. A motivação presidencial é péssima: não melindrar os quartéis. Haveria, porém, razão melhor: a ausência de um consenso nacional mínimo sobre essa parte sombria de nosso passado recente.
O pacto cívico-militar da transição, expresso
na Lei de Anistia, corrompeu a memória nacional. Decretada em 1979, a lei
destinava-se a proteger torturadores e assassinos.
De Sarney a Dilma, passando por FH e Lula,
sucessivos governos confirmaram o pacto original, impedindo que o sistema de
Justiça produzisse conclusões incontestáveis. Ao contrário da Argentina ou
do Chile,
nunca prendemos ninguém por crimes definidos como imprescritíveis. Não imitamos
nem mesmo a África do Sul,
que inscreveu tais crimes e os nomes dos criminosos em documentos judiciais.
Mais que impunidade, escolhemos navegar por águas turvas.
Consequência: corrompeu-se a memória dos
militares. As Forças Armadas continuam a batizar o golpe de Estado como
revolução. Nas escolas militares, justifica-se o regime ditatorial. Nos dias 31
de março, ordens do dia quase celebram a ruptura da ordem democrática. Uma
facção minoritária de generais e coronéis embarcou na trama golpista de
Bolsonaro. Os quartéis melindrados convenceram Lula a esquecer o passado.
O pacto da anistia também corrompeu a memória
das correntes de esquerda que se engajaram na luta armada. A reação à
impunidade foi buscar uma espécie de reparação simbólica. A Comissão de Anistia
tornou-se palco de celebrações das lideranças da opção aventureira. Nos
círculos da esquerda derrotada, os guerrilheiros caídos foram convertidos em
heróis da resistência. Por essa via, evitou-se a revisão crítica da estratégia
das ações violentas “exemplares”.
A resistência efetiva à ditadura lastreou-se
na firmeza de líderes políticos que insistiram em participar dos processos
eleitorais viciados, na clareza das correntes de esquerda que rejeitaram a luta
armada, na persistência dos movimentos sociais. As ações armadas emanaram da
teoria do “foco guerrilheiro”, inspirada em Fidel e Guevara. Segundo sua lógica
subjacente, a vanguarda em armas acenderia a faísca da revolta das massas. Na
prática, porém, os assaltos a bancos, os sequestros de diplomatas e os ensaios
de guerrilha na selva apenas ofereceram pretextos para o endurecimento da
repressão estatal.
Na esquerda, a dura lição choca-se com a
muralha do negacionismo. Poucos atrevem-se à defesa explícita da estratégia da
luta armada, mas a corrupção da memória exprime-se por outros atalhos, como o
apego ao regime castrista em Cuba e às ditaduras
aliadas na Venezuela e Nicarágua.
O valor das liberdades políticas e do sistema democrático circunscreve-se à
retórica oportunista para consumo interno. Denuncia-se Bolsonaro, mas não
Maduro ou Putin.
A narrativa protocolar da esquerda
“anti-imperialista” sobre 1964 aponta o dedo acusador na direção dos Estados
Unidos. É certo que a Casa Branca e a CIA ofereceram amparo ao golpe
(e, também, que a reviravolta política promovida por Jimmy Carter acelerou,
desde 1977, a “abertura” no Brasil). Entretanto o golpe teve as cores do
Brasil.
1964 foi tramado nas nossas elites econômica,
intelectual e militar. Contou com apoio significativo das classes médias
urbanas e dos principais veículos de comunicação. O regime que dele resultou
não era uma peruca imposta por malvados estrangeiros. Infelizmente, o
bolsonarismo tem raízes sociais e históricas.
No Chile, no Uruguai e
até na Argentina formaram-se consensos nacionais básicos sobre as ditaduras de
meio século atrás. O Brasil, viciado na conciliação por cima, prefere ofuscar
sua história, perpetuando estéreis guerras de narrativas. No fundo, é para
conservar esse hábito que Lula decidiu não “ficar remoendo”.
Lula fez aquilo que a direita queria,Bolsonaro jamais afagou a esquerda.
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